Conto de fadas
Luís Coelho
"Anything Else" é realmente "como tudo o resto". Quer dizer... como todos os outros filmes de Woody Allen: um conjunto curioso de associações psicanalíticas, uma súmula construtiva de divagações neuróticas, um prolixo ardil de neuroses e de obsessões retardadas. Estórias de amores desencontrados e de vidas desconstruídas, o cisma constante e putrefacto da morte e da inevitabilidade de um destino daninho e incerto... Woody Allen existe em todos nós. A linha entre a "sanidade" e a neurose é ténue, senão uma pura ilusão. Talvez por isso as opiniões sobre o realizador neurótico (e os seus filmes) sejam tão antagónicas: porque reflecte a necessidade de desindividualização patológica de uns e a necessidade de esquecimento da realidade conturbada dos tempos modernos e acerbos por parte de outros. Temos que "Anything Else" é mais um filme ao estilo de "Maridos e Mulheres", mas com menos maridos e mulheres. É mais uma espécie de "Manhattan" ou "Annie Hall", mas sem a originalidade e fecundidade dos tempos da Diane e da Mia. Contudo, é mais um soberano esboço desse fecundo e conturbado "corpus" alleniano (Mário Jorge Torres), é mais uma genial contribuição para o entendimento da espécie humana, em toda a sua complexidade. "Anything Else" faz-me lembrar diversos contos de fadas, em que a personagem mais jovem (neste caso Jerry Falk/Jason Biggs), imatura e embotada numa ausência de individuação ética e personalística, passa por diversas adversidades, diversas provações, até que, no fim, encontra o caminho para o crescimento e para a libertação. Neste filme, a libertação do seu "estranho" psicanalista, o despedimento do seu incompetente agente, o desprendimento em relação a um amor conturbado com uma bulímico-frígida (leia-se, frígida com quem se envolve emocionalmente) e o corte da dependência em relação ao obsessivo Dobel, representam a partida para um mundo de maturidade e crescimento interior. Logicamente, este crescimento não pode passar por uma cidade que é palco de uma excessiva laboração psicanalítica (Manhattan). É preciso escolher um oposto, uma cidade igualmente cosmopolita mas sem atmosfera alleniana. Los Angeles é uma excelente escolha, e, aliás, encontra-se no extremo oposto dos EUA, no extremo oposto das intenções inconscientes. Resta saber se o próprio Allen vai ingressar nesta viagem, numa espécie de rejuvenescimento (simbolizado perfeitamente pela sua transformação em Jerry), ou se se vai manter prisioneiro dos seus mais recônditos conflitos inconscientes (cativo, como tal, de Duplo... digo Dobel, que não chegou a partir para LA, por medo de um mundo cada vez mais terrorista, ou por medo da adversidade 'interior'). Diria que se "Anything Else" é como todos os outros filmes de Allen, é porque este não conseguiu ainda exorcizar os seus fantasmas inconscientes. Penso que todos os espectaculares filmes de Woody Allen são sobretudo um exercício de catarse, uma libertação lenta de conflitos interiores que persistem em alimentar-se do génio. Ora, pergunto eu: quando somos nós a exorcizar o Woody das nossas mentes, das nossas vidas? Até agora, ainda não consegui deixar de ver e aplaudir os seus filmes. Mas algum dia terei de partir para LA...
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