Essência
Pedro Brás Marques
Silêncio. É ausência de resposta ou é a voz do Divino? Se for esta última, só terá sentido se for exteriorizada ou pode viver perfeitamente no mais íntimo de nós? <br /> <br />Estas questões existenciais estão no centro do calvário que os dois padres jesuítas portugueses, Rodrigues e Garupe, atravessam na sua demanda para encontrar o apóstata padre Ferreira, pelas terras do Japão. A viagem torna-se numa experiência limite, quer a nível físico quer mental, levando os dois a questionarem as suas crenças e o próprio sentido da existência enquanto devotos de Cristo. <br /> <br />Rodrigues é quase a encarnação de Cristo, tal a semelhança física que partilha com o Filho de Deus. E também ele caminha com os pobres, vive entre eles, abençoa-os e cuida deles. Toca-lhes como se fosse a ligação terrena a Deus. “Eles”, são agricultores e pescadores, gente humilde e pobre como aquela que Ele encontrara dezassete séculos antes, na Galileia, e que também procuram conforto e salvação na palavra de “Deusu”. A Fé é tão forte que estão dispostos a nunca a ela renunciar, levando esta escolha às últimas consequências. Rodrigues e Garupe não compreendem esta aparente obsessão e muito menos a forma como se sacrificam, não só por Deus, como até por eles, padres. Será que Deus não os ouve? Se ouve porque é que não responde? E Ele deixa-os morrer sob excruciante tortura? <br /> <br />E quando se tornam eles, padres, as vítimas dos carcereiros, ouvimos Rodrigues a desabafar: “Cristo está aqui. Só não consigo é ouvi-lo…” E é aqui que tudo muda para Rodrigues e Garupe, ao serem desafiados a renunciarem à Fé, sob pena de matarem cristãos em represália. E colocam-nos explicitamente à prova, perante uma escolha impossível: ou renunciam à Fé e os cristãos salvam-se, ou mantêm a sua integridade religiosa e eles morrem. Então, onde é que está Deus para resolver a charada? Cada um deles escolherá um dos dois caminhos possíveis e os resultados da opção serão claros e inequívocos. Para quem opta por ceder, levanta-se então a questão final: será que exteriorizar a renúncia a Deus implica efectivamente abandoná-lO e ser por Ele abandonado? Serão Ferreira e Rodrigues intrinsecamente apóstatas? <br /> <br />Martin Scorcese conhece os caminhos da Fé, da dor, da salvação. Já o demonstrou ao longo da sua extraordinária carreira. Aqui, o seu trabalho era mais complicado, porque materializar o imaterial não é para qualquer um… Mas o autor de “Taxi Driver” e de “A Última Tentação de Cristo” consegue-o, muito embora tenha cedido à facilidade de dar uma voz concreta a Deus, aquando da conversa final de Rodrigues com Ele. Mas construiu a história de forma brilhante, fazendo eco da “via sacra”, num crescendo de dor até Rodrigues alcançar o momento da (sua) revelação. O realizador jogou habilmente com fotografia, escolhendo uma paleta de cores de tons frios para as cenas exteriores e de quentes para as interiores, num evidente paralelismo entre o mundo exterior, onde os ventos e os perigos espreitam e o nosso mundo pessoal, interior, onde arde a nossa chama, a nossa alma. A terceira dicotomia que ajuda a balizar as grandes diferenças é a que se prende entre duas concepções distintas de Sagrado. Uma, espiritual, incorpórea, interna, e outra sensível, tangível, material e em que os padres são a ponte entre as duas margens. É maravilhosa a cena em que Rodrigues distribui cada uma das contas do seu rosário por todas as mãos que lhe aparecem à frente, como se aqueles pequenos objectos fossem relíquias divinas, que não eram, e eles os emissários de Deus, que o eram efectivamente. <br /> <br />Construir um drama com uma dimensão imensa como este, logo a seguir à orgia hedonística de “O Lobo de Wall Street”, mostra bem da polivalência de Scorcese e da abrangência humanística da sua obra. É uma tremenda injustiça o esquecimento a que foi votado, mais uma vez, pela Academia de Artes e Ciências de Hollywood.
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