A Outra História Americana
Ricardo Pereira
Ao narrar a história de Amsterdam (Leonardo DiCaprio), que chega à Nova Iorque em meados do século XIX para se vingar de Bill the Butcher (interpretado com brilhantismo por Daniel Day-Lewis) - líder de um gang que domina a cidade e que 16 anos antes matara seu pai, Pastor Vallon (numa rápida participação de Liam Neeson) -, mas acaba se tornando companheiro de Bill em sua quadrilha e se apaixonando pela amante deste, Jenny (Cameron Diaz), Scorsese evoca vários de seus trabalhos anteriores. A mistura de imigrantes com nativos que formou o submundo da cidade e o preconceito com o primeiro grupo que levaria sua criminalidade se tornar ainda mais organizada estão claras em "Mean Streets" e "Goodfellas". A loucura das ruas, os resquícios da barbárie que fundou a civilizada Nova York está em "Taxi Driver", "After Hours" e "Bringing Out of dead”. A profundidade no tratamento da psicologia de Bill, deixando claro que não é tão fácil definir o comportamento de uma pessoa, se encontra também em "Raging Bull", "The King of Comedy” e "The Last Temptation of Christ”. E a cidade natal do cineasta, tão presente e importante em seus filmes, deixaria de ser coadjuvante para se tornar protagonista de um deles. E esse é um ponto que deve ser muito bem frisado. O filme de Scorsese não é sobre um garoto em busca de vingança. É sobre o nascimento de uma cidade, e, mais amplamente, de uma nação – a partir de um microcosmo, Nova Iorque, o filme traça o diagnóstico do todo, explicando sobre que bases os EUA se formaram, e como essas características que acarretaram problemas naquela época estão presentes até hoje, provocando os mesmos problemas. Scorsese derruba várias lendas caras ao imaginário americano, simplesmente mostrando a verdade. Nova Iorque, a autoproclamada capital do mundo, aquela cidade cheia de glamour e riqueza, foi fundada por um bando de gente pobre, suja, feia, porca e que não valiam o que comiam. A Guerra Civil Americana, o conflito em nome da liberdade dos escravos e dos direitos civis, que uniu a nação e lhe deu suas actuais feições, tinha enormes interesses económicos, e ninguém estava nela por ideais. Os Estados Unidos, um país tão isolado em si mesmo, que praticamente ignora a existência do restante do mundo, foi fundado por imigrantes irlandeses, chineses, alemães, poloneses... Está tudo ali: ódio racial, preconceito, falta de sensibilidade, arrogância, interesses económicos se sobrepondo aos sociais, eleições fraudulentas. Mostrar o que aconteceu há quase 200 anos se torna extremamente actual, pois se a situação agora não é diferente da época, poderemos ter o mesmo destino, só que em proporções muito maiores. É como se Scorsese dissesse sim aos seus conterrâneos, que todos aqui mostrados são grandessíssimos canalhas, mas são nossos antepassados, parte do que somos. O que quer dizer que talvez não sejamos tão melhores do que o resto do mundo, que eles também têm direitos. Sabendo no que deu tanto ódio e ganância, podemos fazer diferente, e nos tornarmos melhores que eles. Basta querer. Apesar de bastante violento, poucos filmes podem ter uma mensagem pacifista tão forte quanto este. A aparição do World Trade Center na cena final é emblemática desta postura de "vejam só no que deu tanta estupidez". Como projecto ideológico, "Gangs..." é, mais do que louvável, necessário. Como cinema, a história já é um pouco diferente. Mesmo com várias qualidades, o filme tem alguns defeitos que comprometem um pouco não só a experiência cinematográfica quanto a exposição da mensagem a que se propõe. O erro básico é o enfoque do roteiro. Para facilitar a identificação do espectador e o seu próprio trabalho, os roteiristas criaram a trama de vingança para servir de fio condutor. O problema é que o que deveria ser apenas um suporte, muitas vezes se torna o principal. Tudo piora ainda mais quando Cameron Diaz entra em cena. Nada contra a moça – cuja beleza é motivo suficiente para justificar sua presença – mas o que ela faz neste filme? Um interesse romântico e um triângulo amoroso nunca concretizado não ajudam em nada a contar a história. Ainda mais quando sabemos que Scorsese foi obrigado a cortar grande parte de seu filme, por pressão do chefão da Miramax, Harvey Weinstein. A total eliminação do personagem de Cameron seria uma boa opção, pois aí Amsterdam seria a metáfora perfeita – alguém que para combater o "mal" se junta a ele e acaba também provocando o mal, esquecendo suas raízes. A cena em que ele joga uma Bíblia no rio caracteriza bem isso. Dentro de uma tradição épica do cinema americano, “Gangs de Nova Iorque” pode ser visto como um “E Tudo o Vento Levou” às avessas, no qual, apesar de ambos se passarem durante o mesmo período histórico, o cenário rural é substituído por um ambiente urbano; ao invés da protagonista feminina que busca ao mesmo tempo condição social, estabilidade e amor, temos um herói movido pelo ódio, sendo que ambos certamente não são imbuídos de uma conduta ética para a concretização de seus objectivos e compartilham um inequívoco senso de sobrevivência. Temos, assim, dois lados de uma mesma América, opondo não somente os quadros geopolíticos de Sul e Norte dos EUA, então envolvidos numa guerra, mas também a visão romanceada e saudosista da história concebida por Margaret Mitchell à crueza de uma realidade onde impera a injustiça, a violência e o desgoverno. Esta comparação pode ser reforçada a partir do momento em que “Gangs de Nova York” faz uma citação explícita a “E Tudo o Vento Levou” quando, quase ao fim do filme, após os confrontos pela cidade, Jenny caminha entre os corpos com a câmara se afastando dela com uma panorâmica, de forma idêntica ao momento em que Scarlet O'Hara percorre a Atlanta devastada pela guerra. Scorsese começou a pensar em “Gangs de Nova Iorque” há mais de 30 anos, quando encontrou, na prateleira da casa de um amigo, com o livro homónimo de Herbert Asbury, escrito em 1928. Naquela mistura de reportagem e narrativa lendária, leitura obrigatória nos círculos de jovens enturmados dos anos 70, um Scorsese de vinte e poucos anos encontrou ecos de histórias que ouviu de seu pai quando criança, sobre a Big Apple de antigamente. Histórias que lhe ajudariam a compreender sua própria presença ali: um americano filho de italianos católicos, crescido em Elizabeth Street (centro da imigração italiana) e frequentador da catedral de St. Patrick (símbolo maior da imigração irlandesa).
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