Com uma lágrima no canto do olho...
O Bom Selvagem -http://tascadacultura.blogspot.com/
Como quase sempre sucede quando vamos ver um filme com grandes expectativas, o máximo que pode acontecer é sairmos da sala de cinema com a sensação de que as nossas expectativas não foram defraudadas. Ora as minhas expectativas para este filme eram elevadas, não tanto por ter vencido o Óscar, mas por ter visto amigos meus, cinéfilos, entusiasmados com a justiça do resultado. Portanto, admito que este meu acto de lhe apontar as profundas falhas seja talvez reflexo disso. É absolutamente certo que o realizador (ou argumentista) tem de tipificar personagens, torná-las fortes, diferentes, exageradas, maiores do que a vida. É difícil fazer uma boa história unicamente com gente mediana (chama-se realismo frances e é uma m**** descomunal). Portanto, até aqui, parece perfeitamente credível e interessante a personagem do treinador-enfermeiro que tem o trauma de ter feito o seu boxeur perder um olho.<BR/><BR/>A rapariga boxeur também é muito agradável e fascinante, pelo facto de ter 31 anos, o que a torna de facto particular, pouco realista mas altamente credível, que é a melhor combinação para personagens interessantes. Tanto assim é que a primeira parte do filme é muito boa e interessante, exceptuando a personagem do Danger, anedótico aspirante a boxeur, que é uma excrecência do filme, tornando-o imperfeito e fácil (conseguem imaginar Orson Welles meter um bobo no "Citizen Kane"? Ou o Scorsese um palhaço no "Raging Bull"? Não...). O personagem de Danger é utilizado como descompressão no filme, não vá o espectador médio ficar demasiado tenso. <BR/><BR/>É emocionante a escalada da nossa boxeur nos vários escalões, a atmosfera dos combates sempre mais e mais densa e dá mesmo gozo vê-la vencer combate após combate. Mas é precisamente no combate com a "ursa azul" que o filme descamba e destrói tudo o que já tinha construído antes, porque revela que tudo o que tinha construído não passou de uma armadilha medíocre para montar o cenário da tragédia e segunda parte do filme, partindo o filme.<BR/><BR/>Estou bastante convencido que o "Million Dollar Baby" é um filme profundamente desonesto e manipulador, desconexo, mas que não deixa de ser bom, como o "Dancer in The Dark" de Lars Von Trier. Quanto a personagens "muleta": primeiro, a figura do padre, no fundo a única que apresenta argumentos contra a eutanásia da jovem e que tenta demover Clint de a aplicar, é desde o início do filme apresentada de forma totalmente tendenciosa.<BR/><BR/>É mais jovem que Clint Eastwood, diz palavrões porque se irrita, fala como um boneco, toda a sua mímica é desagradável e inspira desconfiança. Parece ter uma fé de plástico repetindo chavões, enquanto que Clint é apresentado como um homem verdadeiramente religioso e que se quer redimir, inclusive que finge não compreender a Santa Trinidade da igreja católica mas que ao mesmo tempo estuda gaélico, mostrando um apego às raízes similar a outro que procura redenção mas que ainda é mais extremo (Mel Gibson).<BR/><BR/>Eu sei, eu sei que o público assim percebe melhor que "o padre é mau", mas uma boa história deve ter a coragem de dar credibilidade ao outro lado da moeda. O diálogo entre Clint e o padre é perfeitamente patético e, obviamente, o público sente apenas o dilema interno de Clint Eastwood, não exercendo os argumentos pré-formatados do padre qualquer tipo de dúvida ou influência. Aliás, nem se compreende porque Clint procura o conselho daquele padre que desprezou e ridicularizou ao longo do filme. Não teria sido melhor vê-lo rezar em voz alta e tendo um monólogo interior com Deus, como fez em partes anteriores do filme?<BR/><BR/>Segundo: a família da boxeur é totalmente... disparatada. Não faz sentido, é totalmente absurda a personagem da mãe de tão exageradamente má que é para a filha, mesmo quando é no seu total interesse que ganhe as suas boas graças. Acaso fará sentido que, querendo eles apropiar-se da fortuna da filha, passem uma semana no Disney World antes de a visitar? Aliás, o irmão é cadastrado e acompanha a família; não teria ele pelo menos o mínimo de influência pérfida na família? Acaso fará sentido que a filha não tenha o mínimo traço em comum com alguém da família? E não me refiro a traços físicos, refiro-me a uma genuína empatia ou antipatia com alguém? Não há nada. Estudem o "Mystic River", o anterior filme de Clint, e poderão ver um filme com um argumento infinitamente melhor nestes aspectos (os mais importantes para o drama).<BR/><BR/>Terceiro: o combate com a ursa azul é muito pouco credível. Não sei se costumam ver boxe. Eu gosto. Nunca vi nenhum em que se fizesse sangue e o combate não fosse interrompido, nunca vi agressões fora do tempo que não resultassem na imediata desclassificação. O árbitro não vê? Há pelo menos três juízes a observar permanentemente o ringue. Boxe não é Muai Tai ou Vale Tudo. A personagem da outra boxeur é exagerada e, lá está, com um propósito manipulador: uma ex-prostituta negra da Alemanha de Leste. Querem acrescentar mais qualquer coisa?<BR/><BR/>Teria o nosso anjo irlandês de cair às maos de uma prostituta negra má e batoteira e de um país ex-comunista? Não poderia ela ter simplesmente perdido o combate como no excelente (e desvalorizado) "Rocky"? Perdido mesmo, simples, justo, perdido e ter tido o acidente? Não, tinha de ser por batota. O negro da prostituta aqui não é obviamente por racismo, é simplesmente porque todos nós sabemos que não há campiões de boxe brancos desde os anos 50 e que os negros têm, implicitamente, uma vantagem estatística dentro do ringue.<BR/><BR/>O desastre de Swank é assim visto como algo de injusto pelo processo em que ocorreu (um soco fora de tempo de combate, covarde e matreiro, contra uma negra dura como aço) e não como consequência normal do risco de um combate de boxe. Arranjar forma de um boxeur partir duas vertebras porque vai cair em cima das pernas de um banco é um pouco esforçado, no mínimo. Há efectivamente boxeurs que ficam em coma, com partes do cérebro danificadas. O acidente dela surge, aos olhos de todos menos do espectador como eu, como uma consequência do risco de combater num ringue.<BR/><BR/>Isso é o mesmo que dizer que por um meteorito aterrar mesmo em cima do carro que estou a conduzir, que se diga que "foi um risco de estar ao volante de um automóvel". Ora esta construção da situação é totalmente descredebilizante do drama. E é por isso que o filme é politicamente correcto até à nausea, porque não arrisca a dúvida e a ambiguidade no espectador.<BR/><BR/>Quarto: a última meia-hora do filme é penível. Não bastava a paralisia total, tinha de haver amputação, tinha de haver família cruel, tinha de haver línguas cortadas, etc., etc.. Chora lá um bocadinho, tenham penam dela, ignorem o padre contra a eutanásia, etc., etc.. Este filme não passa de um exercício de auto-redenção de Clint. E que melhor exemplo disto que Morgan Freeman, negro, aplicar um soco de K.O. num boxeur novo e dizer um surreal (e incredível) "Get a job, punk", uma das frases lendárias do inspector Callaghan, de Clint, nos anos 70, polícia branco que a dizia ao bandido negro depois de o esmurrar. Até me admirou não ter dito "Ask yourself a question, punk, do I feel luck today?" Clint, aquilo que fizeste nos 70 não foi assim tão mau que justifique esta tua permanente auto-flagelação<BR/><BR/>Para terminar: o que torna o filme medíocre é o exagero nos meios para justificar o climax final. O filme perde as estribeiras. Não há lugar para a dúvida, não há lugar para o sofrimento ou a angústia. O espectador que pagou cinco euros, o júri do Óscar e a crítica terminam o filme satisfeitos, no máximo com uma lágrima no canto do olho e a consciência tranquila. Quanto ao actores, são excelentes, é pena que se deite tudo fora no fim forçado. O filme é prejudicado por um argumento demasiado... Óscar.
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