O jogo do gato e do rato
Fernanda Lamy
Os Óscares estão aí. Domingo próximo conheceremos e celebraremos os vencedores, lamentaremos e reclamaremos dos vencidos. Embora a Academia tenha "razões que a razão desconhece" (parafraseando e adaptando o célebre verso de Pessoa), por alguma razão "Munich" está entre os nomeados para o Óscar de melhor filme. Pessoalmente, acho que com "AI" a vasta e multifacetada (embora, por vezes, inexplicavelmente decepcionante) carreira de Steven Spielberg atingiu um cume talvez inigualável. De uma pungente e angustiante beleza metafísica, despertou-me um tal tropel de emoções, que esbate inexoravelmente a linha divisória entre a realidade prosáica de uma simples sala de cinema e o fictício mundo encantado criado no écrã. Mas, afinal, não é isso a magia do cinema?<BR/><BR/>Ora, com "Munich", estamos num registo completamente diferente. Spielberg pode ser tudo menos um realizador iterativo e monótono (apesar de certos temas recorrentes); basta pensarmos, por exemplo, no seu primeiro, ou dos primeiros, trabalhos, "Something evil", passando pela saga obrigatória de Indiana Jones, ou até mesmo o sentimental "O Império do Sol", não esquecendo a recente decepção, "Guerra dos Mundos". Claro que os senhores de Hollywood não são propriamente isentos e neutrais nas escolhas que fazem, parecendo-nos por vezes dúbias e ambíguas. Por isso, pode considerar-se que o trabalho de Spielberg sobre o livro de George Jonas não está "inocentemente" na lista, dada a oportunidade e actualidade do tema.<BR/><BR/>Numa Europa que, em 1972, acorda da forma mais inesperada e propositadamente mediática (900 milhões de espectadores em todo o mundo) para o terrorismo em larga escala, de consequências imprevisíveis, Spielberg apresenta-nos um sóbrio, realista e mortífero jogo político do gato e do rato, em que os predadores passam a presas e o perigo surge inadvertida e inesperadamente, sem rosto nem origem definida. Olho por olho, dente por dente. Não há amigos, não há bons nem maus. Tudo é relativo, incerto e inseguro, num mundo dominado por poderosos senhores da guerra, figuras individuais ou colectivas, mais ou menos obscuras, mais ou menos misteriosas, mas e por conseguinte, perigosamente letais ("papa" ou Louis, por exemplo), que nos fazem obrigatoriamente reflectir que "we walk on thin ice".<BR/><BR/>E não passamos, nós, anónimos seres humanos que todos os dias acordamos para a nossa vida diária, de simples marionetas, cujos cordelinhos são mexidos por um bando imenso e legitimado de loucos perigosos sem nação concreta, voluntariamente inconscientes. Aspectos polémicos estes que tornaram a película mal querida por todos os envolvidos visados. Este é o primeiro grande mérito do filme.<BR/><BR/>Em "Munich", os dados estão viciados à partida e desde o início se sente que algo não bate certo, que nada do que parece é. Neste nebuloso ambiente de ameaças veladas, cuja tensão dramática vai sendo excelentemente construída por Spielberg, e em que, realmente, as aparências iludem, aparece-nos um grupo de quatro operacionais israelitas, chefiados por Avner Kauffman. Kauffman é uma personagem que vai gradualmente evoluindo psicologicamente (aliás, todos eles) ao longo da imensa e diabólica teia da qual julgava ser o urdidor mas que, afinal, reconhece não passar de um simples peão num tabuleiro traiçoeiro e movediço, complexo e recheado de interesses e jogadas sujas, onde ninguém é inocente e tudo tem um preço.<BR/><BR/>É aqui que reside, quanto a mim, o segundo mérito do filme: neste progressivo crescimento da personagem, recheado de contradições cada vez mais urgentes à medida que a história avança e cuja complexidade a aproxima e distancia simultaneamente do "legal serial killer" que, afinal de contas, ele é. O argumento vai desenrolando-se e nós vamos gradualmente penetrando nos cada vez mais desequilibrados meandros intimistas de um homem cujo sentido de missão a cumprir (e que ele quase cumpre, embora atabalhoadamente e com as mãos tremendo ao princípio, mas muito mais seguro e frio posteriormente) se vai também confrontando, e de forma gradativamente mais premente, com a sua própria humanidade e individualidade. O que o deixa, a partir do clímax (quando o grupo começa a ser eliminado um por um, por mão desconcertantemente desconhecida), num clima angustiante de sobressalto contínuo.<BR/><BR/>Contudo, a "máquina de guerra" ("roubando" a designação ao filme de Van Damme) que Spielberg constrói está longe de ser o frio, "limpo" e eficiente assassino modelar estereotipado. Basta pensarmos nos seus escrúpulos em alguns dos homicídios, ou no pânico que o invade quando precipitadamente mata um jovem árabe que mal sabe mexer numa arma e que vigiava a casa de um dos seus principais alvos. É sobretudo a partir deste episódio fulcral para a vida da personagem e do próprio argumento do filme (não esquecer que, naquele momento, o grupo já estava reduzido a apenas dois operacionais e, neste caso, não são super-heróis de tipo 007, que arranjam sempre formas mirabolantes de atingir os seus objectivos praticamente sozinhos) que se dá a reviravolta decisiva em Avner. As "máquinas de guerra" não podem parar. A sua força reside na acção, a sua fragilidade na inoperância ou questionamento (um dos "velhinhos" do grupo já pusera esta questão) e este assassino profissional (?), ao desistir de cumprir integralmente a missão de vingança que lhe fora destinada, admitindo o seu fracasso parcial e fugindo para os Estados Unidos (a miragem ilusória do bem-estar?) vai tentar junto da mulher e da filha, que ele vira fugazmente à nascença, encontrar infrutiferamente explicações para o inexplicável. Dar sentido a algo que, cada vez mais, lhe parece gratuito e violentamente infindável (relembre-se, a este propósito, o episódio final do reencontro entre Avner e Ephraim), debatendo-se, à deriva, com uma série de valores antagónicos e fantasmas consecutivos, que o assombram numa amálgama de sentimentos contraditórios e remorsos incontornáveis, transformando a sua vida de quase zombie num inferno, mas conferindo-lhe o realismo e a dimensão humanos que anteriormente referi e que Eric Bana muito bem trabalhou.<BR/><BR/>Terá Spielberg, com esta paranóia obsessiva de Avner, com os dilemas avassaladores que crescem dentro da personagem até à sua rendição final e transformação em anti-herói, criado um elo emocional e cúmplice entre a personagem e o espectador? Creio que sim e este é terceiro grande mérito de um filme que encerra, seguramente, uma determinada visão crítica mas metafórica de Spielber sobre a posição e o "modus operandi" da política norte-americana na era Bush relativamente ao terrorismo. Agora que o jogo chegou ao fim (?), o que nos fica é, tal como em Avner Kauffman, uma sensação amarga e angustiante, vaga e errante, que também nos coloca perante duas questões obviamente inevitáveis e fundamentais: Porquê? Para quê?.<BR/><BR/>"Munich" pode não ser o melhor e genial filme feito nos últimos tempos sobre terrorismo e as maquinações mundiais que comandam o destino da Humanidade, mas é, sem dúvida, um excelente filme e nunca um documentário, que ultrapassa inquestionavelmente estas designações simplistas.
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