Um Mero Spielberg
Ricardo Pereira
Talvez por ter sido parte de uma primeira geração que cresceu vendo TV, e não lendo livros, Steven Spielberg mostre-se tão capaz de reciclar material antigo via olhar pessoal tecnicamente afiado. “Duel” e “Tubarão” ("filmes de monstro" dos anos 50), “Close Encounters of the Third Kind” e E.T. ("filmes de invasão alienígena" dos anos 50), a série Indiana Jones (matinés dos anos 30 e 40) e “A Lista de Schindler” e “O Resgate do Soldado Ryan” (estética do documentário de guerra) demonstram o apego de Spielberg pelo “retro”, o aspecto mais interessante desse seu novo filme. O filme é uma cópia perfeita de imagens da revista Life nos anos 60, do traço de Norman Rockwell e do tom pastel do Technicolor daquela época. O filme é baseado na história real de um vigarista americano que falsificava cheques e se passou por piloto da Pan American, médico e até advogado para fugir dos seus perseguidores, no caso, o FBI. Nada muito mais complexo que isso, o roteiro aproveita a biografia do falsificador, Frank Abagnale Jr. e cria uma linha narrativa simples, começando pelo final, com Frank (Leonardo di Caprio) sendo liberto de uma prisão francesa pelo agente especial Carl Hanratty (Tom Hanks) e desenvolve a história numa espécie de “flashback”. Tudo muito batido mas funcional, se levarmos em conta que o roteirista, Jeff Nathanson, é o mesmo de fitas fuleiras como “Rush Hour 2” e “Speed 2”.No entanto, “Apanha-me Se Puderes” é menos um jogo de gato-e-rato que uma reafirmação da fábula americana do self-made man. Tanto que, ao longo dos anos de perseguição, Frank e Carl desenvolvem uma espécie de amizade, baseada na mútua admiração. O enfoque de Spielberg é totalmente permissivo e complacente com a ganância de Frank. Não há tempo para que o criminoso experimente um mínimo humano de arrependimento ou culpa; quando não está fugindo, Spielberg o enfia em dezenas de cenas de pura auto-indulgência. Ainda mais representativo do inconsciente colectivo americano é o modo como Frank consegue sua fama e fortuna: logo cedo, com o pai, ele descobre que, mais importante do que ser, é preciso aparentar. O importante é se mostrar; é ostentar; é substituir, com um respeitoso uniforme de aviador ou um jaleco de médico, os anos de estudos necessários para exercer ambas as profissões. Os anos 60 dos Kennedy, da contra-cultura e do Vietname (citado rapidamente) dão espaço a um clima constante de “Breakfast at Tiffany’s” (1962), ou mesmo James Bond, citado aqui via “Goldfinger” (1964). É óbvio que foi feito riquíssimo trabalho de pesquisa para emular a identidade visual desse lado americanamente sofisticado dos anos 60, e nesse sentido o filme vale. Essa crónica retro talvez seja para a filmografia de Spielberg o que “North by Northwest” (1959) representa para a de Alfred Hitchcock, um exercício em diversão elegante. É também sobre uma cultura que festeja o dinheiro e o vencedor – e isto é o que o filme traz de mais desprezível.
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