O mercado
Pedro Vardasca
<p>Uma rápida retrospectiva da filmografia de Soderbergh firma a ideia de uma carreira construída com base em dois eixos primordiais. O primeiro reporta à dispersão estilística do seu acervo, o que traz à memória a tradição de alguns dos nomes cimeiros da história do cinema norte-americano. O trabalho por si empreendido não se circunscreve a dois ou três géneros, abraçando múltiplos caminhos, que se iniciam num longínquo ensaio sobre o voyeurismo ("Sexo, Mentiras e Vídeo"), cruzam a ficção científica ("Solaris"), o drama de contornos ecológicos e o desastre da adição ("Erin Brockovich" e "Traffic - Ninguém Sai Ileso"), detêm-se no cinema de natureza biográfica ("Che - O Argentino" e "Che - Guerrilha"), no "noir" ambientado em tempo de guerra ("O Bom Alemão") e na actualização do filme de assaltos na trilogia Ocean´s, entre outras obras de difícil classificação, como o "Falcão Inglês" e Bubble.<br /><br />Para além desta disseminação, Soderbergh revela-nos outra marca relevante no seu cinema, que não se enquadra claramente nos padrões da indústria, mas tão-pouco se encerra na trincheira do cinema independente. Na verdade, o realizador de "Atlanta" tem conseguido, em muitos dos seus filmes, fazer conviver a ideia do espectáculo de multidões com uma razoável elaboração da trama, mesmo nas suas produções mais comerciais, como a saga Ocean´s, repleta dos actores mais populares da última década, mas sem a abundância do traço decisivo para o sucesso no actual cinema norte-americano, os efeitos especiais. Ou seja, mesmo quando ligeiro, Soderbergh não expressa a literalidade mais comummente identificada com Hollywood, alcançando uma visibilidade importante junto de públicos mais minoritários, que depois se saciam nos seus filmes mais matizados pela experimentação.<br /><br />Há pouco estreado em Portugal, "Confissões de Uma Namorada de Serviço" confunde novamente o lugar que Soderbergh ocupa no cinema contemporâneo. As razões são várias, mas começamos pela mais simples, que é a entrega do papel principal - Chelsea, uma prostituta vocacionada para o entretenimento da finança - a uma antiga actriz de um mundo tão apartado como a pornografia, Sasha Grey, afirmação que procede da simples verificação de um facto singular na rotina do cinema dos Estados Unidos. Por isso, a raridade de alguém habituado às estrelas optar por uma figura excêntrica é uma parte essencial do próprio significado do filme, irreverente desde a sua preparação.<br /><br />Depois, temos o ângulo que nos traz uma história longe de ser nova, os colapsos recorrentes do capitalismo financeiro norte-americano, desta vez o de 2008. O descalabro não é tratado pela denúncia de maquinações assombrosas para a obtenção de lucros, mas sim a partir do papel de uma prostituta num mundo de homens que há muito abandonaram as convicções nos valores que distinguem a humanidade da barbárie, exibindo os seus corpos mercantilizados em cenários característicos da supremacia económica - hotéis, ginásios, restaurantes exclusivos. Ironicamente, é Chelsea que faculta uma réstia de afecto a estas vidas baças - ainda que ornamentadas pelo luxo e pelo prazer -, mesmo que as suas motivações sejam puramente materiais, pois não há no seu rosto nenhuma dimensão sacrificial. Vende-se porque gosta de comprar, o que também justifica a cumplicidade do seu namorado, igualmente amante das coisas que apenas o dinheiro pode alcançar. <br /><br />Finalmente, Soderbergh constrói uma narrativa fragmentada, com avanços e recuos temporais, mas que nunca abandona a sua inteligibilidade. O filme é ambientado em espaços fechados, nos quais o labor afectivo de Chelsea é enquadrado numa intimidade que chega a sugerir a rotina dos verdadeiros casais. No entanto, este lampejo de calor não chega para apagar a impessoalidade dos lugares, feitos apenas de matéria e desprovidos do bulício dos seres humanos. Este enregelamento nunca abandona Confissões de Uma Namorada de Serviço, que, na verdade, é um filme atravessado por fantasmas munidos de crédito, pessoas incapazes de pensarem fora do jargão financeiro. <br /><br />Por isso, a maior virtude do norte-americano residirá, porventura, na capacidade de modelar a crítica a uma crença fortemente arreigada no seu país no quadro de uma realização minimalista, sábia na justa gestão do silêncio, das palavras e dos cenários em que as personagens exibem o seu sonambulismo. Sem favor, Soderbergh consegue aqui um dos seus melhores filmes, que merece a atenção de um público alargado.</p>
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