Um olhar humano sobre a realidade americana
Maria Raquel Silva
Eu penso que para entender a mensagem deste filme na sua totalidade é necessário ter um experiência vivencial na América. Não basta partir de ideias estereotipadas fundamentadas num anti-americanismo piroso europeu, principalmente português, país cujos habitantes demonstram uma ignorância "autista" quanto ao outro. Wim Wenders construiu um filme lindo, com um conteúdo metafórico de religiosidade (como exemplo as imagens de uma natureza panteísta na travessia do caminho até Nova Iorque). Ele capta a visão panteísta da natureza que os americanos sentem, (para tal, basta ver o respeito pela natureza retratada nas suas pinturas românticas). Como tal, o realizador transmite-nos essa visão através das belísimas imagens dessa grandiosa natureza que marca a identidade americana.<BR/><BR/>Lana, a jovem que desembarca em Nova Iorque vinda da Palestina onde ajudava os infelizes colhidos pela guerra, representa o espírito de missão de muitos americanos espalhados pelo mundo. Uma jovem que volta à sua terra natal cuja realidade ela desconhece. Mas ela sabe da existência da extrema pobreza que pode acontecer numa das regiões mais ricas do mundo, a Califórnia - em Los Angeles, a meca do cinema, onde podemos ver as lojas mais dispendiosas, as mansões de milhões de dolares, as pessoas mais bizarras e depravadas que habitam no lado oposto da maior das misérias dos sem abrigo, maioritariamente negros, separados por fronteiras enormes de asfalto que retalham aquela area em várias comunidades étnicas que não se misturam.<BR/><BR/>Não há "melting" pot, uma das grandes mentiras da Casa Branca. Isto podemos "ver" na terra da abundância, a pobreza de um abrigo coordenado por um reverendo negro, um cozinheiro negro, comensais negros e uma jovem branca recém-chegada de outra guerra étnico-religiosa. No lado oposto, uma personagem paranóica, Paul, veterano da guerra do Vietname, símbolo da derrota americana, que não consegue esquecer os graves traumatismos sofridos numa guerra imposta a tantos jovens que nem sabiam porque é que estavam a lutar.<BR/><BR/>A isso Paul "arranja " um argumento bushiano para defender sua participação numa derrota dizendo "não perdemos a guerra porque conseguimos evitar que o comunismo se espalhasse mais". A paranóia de Paul, super-vigilância a todos aqueles que poderiam ser possíveis terroristas, representa o pior da América - Bush e a sua administração -, que desde o 11 De Setembro têm aterrorizado o povo americano com constantes possíveis ataques terroristas com os slogans "eles não gostam do modo com vivemos". Um povo que passou a viver sob o medo do "outro" que tem uma cor mais morena, que vive por detrás de janelas, de vídeos, internet, numa fobia de pânico de serem atacos de novo. <BR/><BR/>Paul e os outros brancos representam as marionetes que a Casa Branca conseguiu manietar à custa da sua propaganda feroz simbolizada pela bandeira. A crítica aos média americanos que apenas transmitem a palavra do "master's voice" Bush, apresentada de uma forma magnífica numa cena de uma senhora de idade presa numa cama e que só consegue ouvir aquele canal de televisão que apenas comunica a palavra de Bush.<BR/><BR/>A compreensão de um "estrangeiro " (o realizador) pela dor de inocentes, que perderam a vida no 11 de Setembro, é o culminar do conflito, a catarse destas duas personagens - sobrinha e tio - que, em campos opostos, tentam compreender-se e ultapasssar os conflitos familiares e políticos, olhando e "ouvindo" as vozes dos inocentes mortos no Ground Zero. Não é por acaso que o filme termina com o tio e a sobrinha no Ground Zero, é a mensagem final de esperança que aquele grande país, tão contraditório, mas também tão cheio de amor, se possa encontrar de novo, sem guerra.<BR/><BR/>Tudo isto foi dito de uma forma objectiva e directa no "Farenheit 9/11" por Moore, cujo comentário recebeu os maiores elogios e o prémio de Veneza. Wim Wenders diz o mesmo de uma forma poética, através de uma fotografia belíssima que dialoga com o espectador. O filme recebeu uma crítica frouxa dos nossos críticos, que pouco conhecem da América porque nunca lá viveram, mas como o filme não é explicitamente anti-americano saloio, já não merece uma leitura mais profunda. Como diz o "Inimigo Público", um crítico de cinema intelectual tem de se mostrar contra o cinema americano, mesmo quando feito por um europeu. Que provincianismo saloio!
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