Descida ao Inferno
Pedro Brás Marques
Algum obtuso resolveu traduzir “The Counselor” por “O Conselheiro” quando seria muito mais adequado ter optado por “O Advogado”. Primeiro porque seria a tradução mais adequada; segundo porque é mesmo isso que a personagem principal é; finalmente, porque o causídico não dá conselhos a ninguém, muito pelo contrário, anda o filme todo à procura deles… <br /> <br />A mais recente proposta de Ridley Scott centra-se numa personagem que resolve, um dia, passar do seu passivo papel de advogado para um outro, aquele normalmente reservado aos seus clientes: o de traficante de droga. Só que nem tudo corre bem. Aliás, corre tudo muito, muito mal. Ele não é operacional, mas antes um dos sócios do negócio só que uma golpada que leva ao desvio da carga desencadeia uma verdadeira descida aos infernos para a qual não haverá retorno. Perseguido pelo cartel dono da droga que não acredita na sua inocência real, ele perde amigos, perde a independência e, principalmente, perde a mulher que ama. O advogado aprende, tarde, a dura lição de que só deves mexer num instrumento musical se souberes tocá-lo… Saindo da sua zona de conforto, entrando num mundo de escuridão e terror, onde a Morte se refastela incansavelmente, o Advogado vai pagar caro essa ousadia e perder a sua alma para sempre, pois até a redenção lhe é negada. <br />Há algo que distingue claramente este “O Conselheiro” de quase todos os filmes feitos até hoje: a qualidade dos diálogos. Cormac McCarthy, o escritor por detrás de “Filhos de Deus”, “Este país não é para velhos” ou “A estrada”, é conhecido pelos seus livros densos e escuros e quando teve a oportunidade de escrever um argumento original para cinema, não perdeu o estilo: “O Conselheiro” é mesmo uma viagem ao lado negro da alma. E está aqui o principal problema deste filme: é que os diálogos são verdadeiras pérolas literárias. Há extensos monólogos por parte de algumas personagens, de uma depuração sensorial que seria impossível um traficante de droga, por exemplo, produzi-los… E por muito fascinante que tal seja, e é, a verdade é que faz quebrar a dinâmica narrativa, prejudicando a obra no seu todo. <br /> <br />Com Scott na realização e McCarthy na escrita, só uma parada de estrelas estarai a altura de tão grandes criadores. E assim foi. O causídico é interpretado por Michael Fassebender, uma estrela em merecida ascensão, aqui num registo complexo, de enorme conflito interior, que remete imediatamente para a sua extraordinária composição em “Vergonha”. Penélope Cruz é a simpática e doce namorada, o anjo no meio dos demónios, crucificada pelos pecados do namorado. Javier Bardem, aparece de novo como um louco, destravado, divertido e inteligente, depois dos que já tinha feito em “Este país não é para velhos” e “Skyfall”. Há, ainda Brad Pitt, mas os aplausos terão de ir para a ‘femme fatale’ interpretada por Cameron Diaz, a quilómetros da ‘dumb blonde’ que lhe deu fama. Só o nome da personagem já deixa adivinhar quem e o que ali está: Malkina. Ela é o Mal personificado. É um diabo que veste Prada, Armani, Valentino, que conduz Ferraris e Porsches e se diverte a ver uma metáfora de si própria: chitas africanas a perseguirem implacavelmente coelhos no deserto americano. Gelada, despida de roupa e de sentimentos, protagoniza a cena de sexo do ano, da década e do século, lançando o seu encantamento sobre o pobre Bardem que, logo ali, se apercebe do preço do bilhete daquela viagem… Por uma vez, Cameron Diaz está soberba. <br /> <br />Ingredientes desta qualidade indiciavam que “O Conselheiro” seria o filme do ano. Não é. E tal acontece apenas porque não só se deu demasiada liberdade a McCarthy, como Ridley Scott se limitou a transferir para imagens o que o autor de “A Estrada” havia escrito. Cinema não é literatura filmada. Já todos o deviam saber.
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