A Perturbação Cronenberguiana
Pedro Brás Marques
Não há muitos realizadores a cuja obra se possa aplicar o rótulo de “perturbadora”. David Cronenberg é um deles e «Mapas para as Estrelas» confirma-o duma forma arrasadora. É impossível terminar a visualização do filme e não sentir que alguma coisa mudou cá dentro… <br /><br />Tendo como cenário a indústria cinematográfica de Hollywood, o realizador canadiano e o argumentista Bruce Wagner, convida-nos para uma visita “behind the scenes” do que é a realidade humana do mundo do cinema sediado em Los Angeles. Obviamente que o argumento está esticado para lá do limite, para que o espectador possa percepcionar os distúrbios duma forma mais clara mas, também, mais violenta. <br /> <br />Tudo gira à volta de dois pólos que acabam por se encontrar. Dum lado, uma actriz decadente, uma Gloria Swanson do século XXI e, do outro, uma família completamente disfuncional, em que o pai é massagista de estrelas, a mãe neurótica vigia o filho que se revela uma insuportável “child-star” e a irmã que acaba de sair duma instituição mental, sendo certo que o pai e a mãe são “sangue do meu sangue”, para citar directamente João Canijo. Ou seja, o que Cronenberg nos propõe é uma visão de que a família de Hollywood, além de se alimentar de álcool, drogas e modas que mais não são do que manias momentâneas, está toda infectada por problemas intrínsecos, que atingem quem está de chegada como quem está de partida. A podridão estende-se por todo o lado, num festim onde o Diabo celebra a vitória numa festa em que os convidados são os sete pecados mortais, todos presentes, com destaque para a avareza, a luxúria, a inveja e o orgulho. Mas a danação eterna, entenda-se “o esquecimento”, é o grande medo que leva a cometer todas essas ofensas, incluindo rebaixar-se indignamente ou celebrar a morte do filho duma rival, como o faz a personagem brilhantemente interpretada por Julianne Moore. Por tudo isto, é óbvio que a ironia começa logo no título, com o duplo sentido de se referir não só aos mapas que se vendem em Hollywood para indicar aos curiosos as casas das estrelas, como a revelar que são as próprias vedetas a necessitarem dum mapa para se orientarem… <br /> <br />Este não é o primeiro filme a abordar o mundo pantanoso e escuro na cidade dos anjos e das estrelas. “Sunset Boulevard”, de Billy Wilder, aproximou-se e “O Jogador” de Robert Altman ficou ainda mais perto. Mas nenhum ousou descer ao Inferno como David Cronenberg o fez. Até porque, o mais certo, é que mais ninguém o conseguiria fazer.Ao longo da sua carreira, o realizador permaneceu fiel a uma temática que se focou, quase sempre, na relação do Homem com determinados comportamentos de risco e o duelo de consciência entre o ser e o querer ser algo diferente e único. O resultado foi e é quase sempre, tenebroso e, até, horroroso, como o descobrem a maior parte dos protagonistas cronenberguianos que ousam quebrar as Leis do Mundo. <br /><br />Cinema, assim, intenso, profundo, visceral, é raro. Há que aproveitar, numa época em que vivemos mais para fora do que para dentro e onde o que conta é parecer, muito mais do que ser.
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