O realismo (camuflado) do cinema de Stephen Frears
Luís Mendonça
Não é a primeira vez que Stephen Frears se preocupa com os problemas sociais que assolam as sociedades modernas. Já em «A Carrinha» ou no seu último «Liam», Frears demonstrava uma clara necessidade em mostrar aquilo que muitas vezes é evitado por nós: o desemprego é um dos seus temas de eleição. Em "Pretty Dirty Things", Frears aborda outro dos flagelos sociais, a imigração ilegal. Não se limita a mostrar a realidade dura e crua: Frears pega no género do "thriller" para nos levar a uma viagem sem fim ao mundo paralelo da imigração ilegal e do tráfico de orgãos. Conta uma história de ficção sob o disfarce do "thriller", que nos vai cuspindo na cara a realidade que nós tanto evitamos. É um filme-aviso, uma experiência-limite que nos vai fazer abrir os olhos para um dos problemas mais marginalizados da nossa sociedade. E se calhar é por isso que "Dirty Pretty Things" constitui um tipo de cinema invulgar: na pessoa de um imigrante nigeriano (Chiwetel Ejiofor), vamos descobrindo a sujidade que escorre dentro do hotel Londrino onde ele trabalha e, ao mesmo tempo, constatando a realidade de um país e até do mundo em que vivemos. Okwe (o imigrante nigeriano) descobre um coração humano a boiar numa sanita de um quarto do hotel, mas, devido à sua condição de exilado, resolve ignorar o incidente. Ao frenesim da sua vida, que não o deixa dormir, junta-se esse mistério sinistro que o corrói por dentro. Quando os factos tornam-se insuportáveis, Okwe começa a fazer perguntas e a afundar-se num autêntico inferno na terra. Ao mesmo tempo, ele e a sua colega de quarto, de origem turca (Audrey Tautou), são procurados pela policia de estrangeiros e fronteiras. O imaculado Chiwetel Ejiofor tem, neste filme, uma das melhores interpretações masculinas do ano. Sabe-se que a primeira escolha de Frears para o papel de Okwe era o oscarizado Denzel Washington, mas Chiwetel tomou conta do recado. A sua figura fatigada, o seu rosto marcado são aspectos que só contribuem para o crescendo emocional de Okwe. O desespero é evidenciado pelo seu olhar estagnado e pelo seu corpo cada vez mais encurvado. Não se trata de um actor espalhafatoso que mostra tristeza com uma lágrima tirada a conta-gotas: Chiwetel Ejiofor tem vida no ecrã e é genuíno. É raro encontrar-se tamanha dedicação. Audrey Tautou, a maculada mas sempre bela Audrey Tautou, não foi, de facto, das opções mais geniais de Frears para este filme. Contudo, não deixa de ter uma interpretação simpática. Parecem-me óbvias as suas limitações ao nível da representação - ainda paira o fantasma de Amélie -, mas Tautou tem sempre uma presença luminosa, digna de nota. O trio invulgar Stephen Frears, Chiwetel Ejiofor, Audrey Tautou é o trio que faz de "Dirty Pretty Things" um dos filmes mais curiosos e estranhos do ano. O romance platónico entre Tautou e Ejiofor é que me pareceu um elemento fútil e desnecessário. A ideia do coração perdido que volta a ter um dono mostra-se excessivamente colorida para as exigências do filme. O maior génio está na simbologia utilizada por Frears. O contraste dos mármores polidos do hotel com o obscurantismo, para não dizer sujidade, do negócio que aí se desenvolve é um pouco o espelho do nosso comportamento em relação à realidade da imigração ilegal: olhamos comodamente para a fachada do edifício, temos noção que ele existe, mas não queremos lá entrar. Frears ousa entrar e inquieta-nos com o que vê.
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