Os Fantasmas de Polanski
Ricardo Pereira
O realizador Roman Polanski reencontrou alguns fantasmas do passado em seu novo filme, “O Pianista”, um relato dolorido, mas sóbrio, das experiências vividas pelo pianista Wladyslaw Szpilman no gueto de Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial. A reconstituição do gueto, com suas casas imundas e moradores acovardados e abatidos, é impressionante. Pelas ruas, multidões de homens, mulheres e crianças perambulavam em busca de informações sobre seus parentes desaparecidos e de algum resto de comida. Crianças e velhos mortos de inanição eram obstáculos nas calçadas, ultrapassados por quem tentava se manter em pé. O filme acompanha a descida ao inferno do brilhante pianista Wladyslaw Szpilman (Adrien Brody), impedido de exercer seu trabalho por ser judeu e lançado no gueto com sua família. A luta pela sobrevivência faz com que aceite qualquer trabalho em troca de comida, incluindo estafantes jornadas na construção civil. Protegido por amigos da resistência polonesa, passa os últimos anos da guerra escondido em apartamentos, onde não pode nem abrir as janelas e depende totalmente de ajuda externa para se alimentar. A actuação comovente, porém contida, de Adrien Brody que rendeu ao actor o Óscar neste ano é também o principal responsável pelo impacte que o filme de Roman Polanski causa à plateia. O drama da sua personagem não é maior nem menor do que o das demais vítimas do holocausto, mas seu rosto confere ao pesadelo colectivo uma dimensão particular, como se todos os dramas se resumissem apenas em sua própria história. O filme de Polanski também é feliz em retratar aspectos pouco abordados do gueto de Varsóvia, como a resistência de intelectuais e trabalhadores judeus através do trabalho clandestino em pequenas gráficas e em atentados terroristas quase solitários contra instalações militares na Polónia ocupada. As imagens do país devastado pelos bombardeios, nos momentos quase finais do filme, é uma moldura que acompanha o espectador, mesmo sabendo que a história de Szpilman teve um final feliz. Nascido em Paris, filho de pais judeus, Polanski retornou à Polónia quando tinha dois anos. Depois de escapar do gueto, passou a guerra vagando sozinho pela Polónia ocupada. Seus pais foram deportados para um campo de concentração, onde sua mãe morreu. Como "Schindler’s List", "O Pianista" mostra as crueldades perpetradas pelos nazistas contra a população judaica. Mas o filme se abstém de atribuir culpas. Talvez a história de Szpilman não seja tão diferente de outras, já tantas vezes contada em filmes. É possível também que Polanski não seja um inovador na maneira de contar essa tragédia colectiva por meio de um caso individual. Mas, atenção: há mudanças de tom, de registro, de entonação – que fazem de “O Pianista” um caso particular na vasta filmografia consagrada ao Holocausto. Os diferenciais, a meu ver, são a já comentada actuação de Brody, a realização despojada de Polanski, e a visão mais complexa do gueto e do inimigo. Boa parte do filme é consumido naquilo que é inevitável. Há uma vida normal, pessoas comuns, honestas, criativas. E essa vida é destroçada pela prepotência bélica de um país. Há também a cena potencialmente polémica em que um oficial alemão descobre Szpilman escondido no gueto e, em vez de denunciá-lo, o protege. O facto é que o alemão é também um personagem real, Wilm Hosenfeld, que depois da guerra desapareceu num campo de prisioneiros russo. No livro que escreveu – e no qual se baseia o filme – Szpilman nunca se coloca como herói, mas como um sobrevivente acidental, um homem que por ironia do destino deve sua vida ao inimigo.
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