Julieta de Almodovar
Pedro Brás Marques
Culpa, solidão, depressão, amargura são alguns dos temas de “Julieta”, o mais recente filme de Pedro Almodovar, agora apenas “Almodovar”, porque nome é do próprio e apelido é de família. E o cosmos do realizador espanhol é suficientemente vasto para que se possa falar numa enorme legião de seguidores, que o acompanham desde que foi bandeira duma certa “movida” na Madrid dos anos 80 do século passado. <br /> <br />Julieta é-nos apresentada em dois tempos, antes e depois de encontrar Xoan, o amor da sua vida e de que resultou uma filha, Antia. No tempo presente, Julieta não vê, nem fala com a filha há doze anos. Um dia, quando já estava a tentar aceitar o “desaparecimento” de Antia, encontra casualmente a que foi a melhor amiga dela durante a adolescência. E a dor da perda, a angústia da separação voltam e Julieta procura expiar todo esse sofrimento escrevendo a história de tudo o que aconteceu desde o momento em que se encontrou, pela primeira vez, com Xoan. Ao longo do filme, um longo flash-back, ficámos a saber o motivo da ruptura duma família que tinha tudo para ser feliz, mas que acabou completamente estraçalhada, emocional e geograficamente. <br /> <br />A complexidade do universo feminino, da sua textura sensual, dos seus jogos emocionais, das motivações escondidas, dos consentimentos tácitos, sempre foram elementos de fascínio para Pedro Almodovar, muito por força das razões pessoais e familiares que ele não se cansa de repetir. Em “Julieta”, o mergulho nesse oceano de sentimentos é talvez o mais profundo da sua carreira. Porque Julieta é uma mulher que vemos ser detalhadamente analisada, pois só assim se perceberia a dimensão da sua história e do seu sofrimento. Julieta não entende o que lhe acontece e, pior, porque é que lhe acontece. E mesmo quando descobre a razão da fuga da filha, só pôde concluir que não teve culpa nenhuma nessa decisão. E não percebe outra coisa, bem mais grave, como é que tanto amor, por Xoan e por Antia, pode trazer tanta desgraça, tanto sofrimento. A sua obsessão de doze anos comanda-lhe a vida, mas também a faz perdê-la. <br /> <br />O filme só funciona porque, realmente, há duas interpretações soberbas, de Emma Suarez e Adriana Ugarte, para os dois tempos de Julieta, coadjuvadas por vários secundários que, embora eficazes, nem sequer conseguem fazer sombra a qualquer das “leading ladies”. Almodovar, esse, está melhor do que nunca. Seguríssimo, gere a história com mão de mestre, afasta-se dos rochedos de melodrama de que se aproximou em certo ponto da sua carreira, para apresentar um filme formalmente clássico, mas onde não faltam as suas imagens de marca. Mas, comprovando a evolução, regista-se que estão muito mais diluídas, inseridas no todo que é o filme e não “protagonistas” como o eram em muitos dos seus filmes. Confirmámos que a habitual paleta de cores vivas continua, mas agora em tons mais suaves; o gosto pelo kitsch marca presença, mas em discretos pormenores, como num papel de parede ou numa música fugaz; e mesmo o rosto cubista da omnipresente Rossy de Palma está escondido atrás duma ruralidade bem maquilhada. <br /> <br />Almodovar baseou o argumento em contos da canadiana vencedora do Nobel da Literatura Alice Munro, mas o que funcionou por escrito, não funcionou no filme. Estou a falar do fim, em aberto, é certo, mas algo atabalhoado e precipitado, pouco condizente com o que nos foi lentamente servido durante as duas horas anteriores. Foi pena, porque não fosse isso e arriscaria dizer que este era o melhor filme do realizador espanhol.
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