A voz do silêncio
Ricardo Pereira
A primeira reacção diante da leitura da sinopse de “Fala com Ela” pode gerar uma compreensível perplexidade: dois homens descobrem a amizade a partir do amor que devotam a mulheres em estado de coma. "Mas isso dá um filme?" pode perguntar o espectador, mesmo aquele mais acostumado às excentricidades do espanhol Pedro Almodóvar e à sua desmedida imaginação na criação de personagens e relações fora de padrões de "normalidade". Pois foi com esse fio condutor que Almodóvar não só realizou talvez o melhor filme de sua carreira como uma obra de impactante beleza e alta densidade emocional. No cerne da trama, um sentimento um pouco fora de moda: a genuína compaixão pelo ser humano. “Fala com Ela” começa sem palavras, apenas com os sons de um espectáculo de dança da coreógrafa Pina Bausch. Na plateia, dois homens que não se conhecem assistem ao balé: o jornalista Marco (o argentino Dario Grandinette), que mal disfarça as lágrimas, e o enfermeiro Benigno (Javier Camara), que sorrateiramente percebe a emoção do espectador ao seu lado. Depois do teatro, a vida. Marco envolve-se com uma toureira, Lydia (Rosario Flores). Recém-saída de uma decepção amorosa, Lydia é vigorosa, impetuosa, contraditória: enfrenta touros na arena, mas treme de medo diante de uma cobra. Uma tarde, Lydia é ferida e levada para um hospital em coma irreversível. Em quarto ao lado, Benigno zela, há quatro anos, por Alicia, também em estado de coma. “Fala com Ela” poderia representar um manual do melodrama, com personagens perturbados, coincidências implausíveis, sobrecarga de tragédias, incidentes rocambolescos, não fosse o agudo sentido de busca do essencial dos personagens que Almodóvar exercita com notável liberdade e mestria, sem abdicar do humor. A direcção é impecável em todos os aspectos - fotografia (Javier Aguirresarobe, interrompendo uma longa parceria com o brasileiro Afonso Beato), montagem, elenco, incluindo actuação arrasadora de Javier Camara e sensível participação de Geraldine Chaplin. Sem falar na façanha de filmar um corpo sem movimento com altas doses de erotismo e sensualidade. Com total domínio narrativo, Almodóvar divide a trama em capítulos, e não se constrange em inserir um impagável filme mudo no meio da história - paródia de “The Incredible Shrinking Man”(1957), de Jack Arnold – ou fazer uma pausa para o solo de Caetano Veloso em Cucucurucu Paloma. “Fala Com Ela” é o resultado emocionante de uma sofisticação notável por parte do seu autor, que filma não apenas do seu próprio olhar inconfundível, mas ainda o realiza via uma rica herança cultural do chamado "cinema de lágrimas", tão caro à cultura latina. Lembrem ainda que não existem melodramas tão profundos como esse, sensíveis no toque e na clara exposição de suas verdades sugeridas sobre essa vida doida. Estamos aqui em claro território romântico, no sentido literário do termo. Personagens não são exactamente práticas nessa história de amores. É gente que se enterra cada vez mais em paixões que os levarão à tristeza, à saudade e a barreiras emocionais de difícil transposição. Como alguns devem saber, não há sensatez em boa parte dos que amam e Almodóvar investiga com sensibilidade atordoante e incrível respeito e compaixão tanta insensatez. Fica claro com “Fala com ela” que Almodóvar é, cada vez mais, um estilo, uma assinatura que se reconhece ao primeiro fotograma, uma excepção de personalidade num cinema cada vez mais impessoal e pasteurizado.
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