O mal menor...
Pedro Brás Marques
Longe vão os tempos em que o cinema, em especial o de origem americana, nos mostrava um mundo onde a dicotomia entre o bem e o mal estava perfeitamente definida. Hoje, nada é assim, até porque, efectivamente, o mundo não é a preto e branco. Em “Sicário”, Kate é uma agente do FBI que, num raid a uma casa suspeita de ser um armazém de droga, descobre dezenas de cadáveres emparedados. Chocada, quer descobrir os verdadeiros culpados e, para tal, aceita o convite para integrar uma força especial e secreta, encarregada de resolver o problema. Comandada por um operacional pragmático, Matt, ela tem aparentemente poder de tudo fazer e dispõe de recursos infindáveis. Mas por ali está também ums personagem misteriosa, negra, Alejandro, que vai ser a chave de toda a história. <br />A proposta de Dennis Villeneuve é de nos fazer recordar que, por vezes, atrás das boas intenções se escondem objectivos difusos, mas bem reais… Kate simboliza a pureza de intenções, a Lei e Ordem… Mas vai aprender, inclusive com uma pistola apontada à garganta, que a realidade é bem mais complexa e que, por vezes, para se alcançar um mínimo de virtude é necessário fazer um pacto com o Diabo. Aqui, o demónio é aquele que tem nas mãos o mal menor e com quem o Estado prefere pactuar. Parece, e é, paradoxal, mas não há dúvida em como a alternativa levaria a muito piores consequências. Quem é então o sicário? O assassino profissional ou o Estado que se vende? <br />Alejandro e Kate são os dois pólos deste filme e mereciam duas interpretações à altura. Felizmente, tiveram-nas, em Benicio del Toro, compondo uma personagem fria e pragmática e em Emily Blunt, fiel aos seus valores e à sua ética. Mas o melhor mesmo é a realização do canadiano Denis Villeneuve, autor dum belíssimo filme, “Incendies”, e de dois sem grande chama, em especial “O Homem Duplicado”, baseado no livro homónimo de José Saramago. Em “Sicário”, Villeneuve constrói uma história sobre a política que se sobrepõe à Lei, tendo a selva do narcotráfego como cenário. Aproveita inteligentemente a própria secura e aridez do terreno desértico, porque, realmente, acordos destes não são coloridos e muito menos são agradáveis à vista. As cenas de acção, magnificamente orquestradas, quase todas pintadas em grandes planos, obrigam o espectador a imergir nos combates e sentir que não se está perante um mero exercício de estilo… <br />“Black Mass” ou “71”, ambos ainda em exibição, são outros exemplos de filmes onde as partes confrontantes tecem cumplicidades que, à partida, seriam impensáveis entre inimigos. Se isto significa que o cinema parece estar à procura de oferecer ao espectador uma emoção mais próxima da realidade, onde a natureza humana se pode espelhar em toda a sua virtude e infâmia, por contraste à televisão, ocupada com invasões de mortos-vivos e com terras míticas habitadas por dragões, isso só pode ser uma boa notícia.
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