Diferentes mas iguais
Pedro Brás Marques
Há certos realizadores que gostam de brincar com os espectadores, indicando caminhos que nunca serão seguidos ou promovendo valores que jamais serão defendidos. Este jogo é evidente em “Dheepan”. Quando somos levados a pensar que se trata dum filme sobre refugiados e os seus problemas de integração, descobrimos que, afinal, é muito mais do que isso. <p> A narrativa começa, precisamente, num campo de refugiados, aguardando a vez para seguirem viagem. Como as famílias têm prioridade, Dheepan junta-se circunstancialmente a uma mulher, Yhalini, e a Illayala, uma criança. Por diferentes motivos, os três estão em fuga do Sri Lanka mas, ao contrário da outra há dois mil anos, não há nesta família nada de sagrado. Procuram, sim, a terra prometida, onde reside a esperança duma vida melhor. Conseguem enganar as autoridades francesas, os adultos obtêm trabalho e a miúda vai para a escola. Entre os três começa a tomar forma algo semelhante ao conceito de família, mas o «banlieu» onde vivem alberga um dos cancros urbanos do Velho Continente: o tráfico de droga. E Dheepan, antigo combatente tamil, não pode ficar indiferente ao perigo que a sua família corre… </p><p> Através dum argumento aparentemente simples, Jacques Audiard leva-nos a ponderar valores que temos por adquiridos e outros que votamos a alguma indiferença. Desde logo, o conceito de família, como base social e como entidade a proteger. Apesar de não haver qualquer ligação entre os três, a não ser a nacionalidade, a verdade é que aos poucos vai emergindo uma família, com cada membro a assumir os seus papéis tradicionais. Porque o que une, real e efectivamente, as pessoas são os laços emocionais e eles brotam nos momentos mais inesperados. Daí a zona de paz que é aquele pequeno apartamento e a zona de guerra que é o exterior. Dheepan bem tenta traçar uma fronteira, mas ele sabe, por experiência própria, que a natureza humana é igual em qualquer lado. A questão das lutas tribais não é algo que apenas acontece no distante Terceiro Mundo. Ela existe dentro do Mundo dito Civilizado, amedrontado com o potencial perigo terrorista dos refugiados, quando a verdade é que, no seu seio, há muito que grassa um terrorismo que continua a escapar aos poderes policial e judicial. Portanto, apesar das tantas propaladas diferenças civilizacionais, quando passamos para lá dos rótulos e da superficialidade, o que vemos é que, no fundo, somos todos iguais, enfrentamos os mesmos problemas, os mesmos dramas e necessidades. </p><p> Depois de grandes filmes como "De Tanto Bater o Meu Coração Parou", de "Ferrugem e Osso" e, principalmente, do que realizou entre estes dois, o extraordinário "Um Profeta", Audiard volta a insistir em personagens que se transfiguram para lá do seu estado normal, face às circunstâncias da vida. Como se, por vezes, o mais profundo “eu” estivesse ali à espera que alguém abrisse a porta da coragem para ele poder sair. O realizador francês foi feliz em ter encontrado esse actor com nome impronunciável, Jesuthasan Antonythasan, que encarnou na perfeição toda a dor das angústias existenciais e do sofrimento da inevitabilidade das acções de Dheepan. O mais extraordinário é que, cada um na sua área, conseguem contar a história duma forma o mais objectiva possível, sem entrar em moralismos e, o que seria pior, em manipuladores sentimentalismos. Mais uma vez, Jacques Audiard não desilude. </p>
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