E foram felizes para sempre
Fernanda Lamy
Confesso que sou fã do Tim Burton, devo ter visto quase todos os seus filmes. O modo como apresenta (satiriza, mais concretamente) a realidade e as relações humanas é muito seu e quase sempre surpreendente, fazendo-me continuar a achar que o génio humano é pura e simplesmente ... fabuloso. Após a espantosa metáfora caricaturada da vida actual, extremamente real, mordaz, subversiva até, que foi o delicioso "Charlie e a Fábrica de Chocolate", este "A Noiva Cadáver" é, além de um encanto para os olhos e os ouvidos, um fabuloso regresso ao mundo encantado dos contos maravilhosos e neste ponto ambos os filmes se juntam, provando, se necessário fosse, o interesse de Tim Burton pelos topoi do imaginário tradicional (relembre-se o já clássico "Eduardo, Mãos de Tesoura").<BR/><BR/>Assim, não será Charlie o arquétipo do menino ideal (que já não existe, obviamente, irreal como toda a sua vida e família), entrando, por isso, para o leque das personagens míticas: bom filho, bom neto, sensato, demasiado maduro para a idade, obediente, altruísta, generoso, sincero, digno e, claro, pobre, um dos típicos heróis dos contos de fadas (aliás, toda a história é apresentada como tal: o incipit "Era uma vez..."; o protagonista (Charlie) é um ser dotado de características que se apresentam excepcionais se tivermos em conta a realidade que o filme pretende satirizar, tem uma vida miserável, passa por uma série de privações e provas ultrapassando-as – todas as tentações apresentadas por Willie Wonka, grande oponente, sobretudo a final, ser o herdeiro da sua fabulosa fábrica – o "happy end" e a moral da história, com a recompensa do herói, por se ter mantido firme nos seus objectivos e demonstrado carácter digno.<BR/><BR/>Do mesmo modo, também a fábula narrativa de "A Noiva Cadáver" se constrói com base na típica estrutura dos contos tradicionais enunciada acima, embora com algumas inversões/subversões, ou não fosse este mais um produto da "mazinha" e fértil imaginação de Burton. Ao contrário de "Charlie...", não há n'"A Noiva..." um núcleo familiar protector e seguro, bem pelo contrário. É assim que nos aparecem as feias e distorcidas figuras dos pais de Victor e Victoria, cujo aspecto acompanha o intelecto, desprovidos de qualquer sentimento paternal e, sobretudo, maternal, castradores até ao âmago, verdadeiros "maus da fita", que queremos ver castigados sem perdão. (Digam lá se isto não é subversivo?)<BR/><BR/>Aliás, de toda a família presente na boda de casamento de Victoria com o execrável conde Barkis, não há ninguém que não seja fisicamente disforme, o que não é nada abonador dos "belos laços familiares", que são cada vez menos o suporte da sociedade (des)humana em que vivemos. É que são eles que estragam tudo, ao contrário dos mortos, que se divertem "à grande e à francesa", com uma boa disposição hilariante e contagiante, cantando a plenos pulmões (salvo seja) e "cheios de ...vida" que "se os vivos soubessem como é a morte, não quereriam estar vivos". É este "mundo às avessas" paralelo mas espantosamente ético, este Além metamorfoseado em cabaret dos anos 20, que apanha o espectador desprevenido e o prende irremediavelmente ao écran.<BR/><BR/>Presos também foram os nossos heróis, Victor e Victoria (duas faces da mesma moeda, duplos um do outro, embora de sexo inverso), numa teia de negros acontecimentos (mais negros do que a noite em que tudo se passa - não temos um "Sonho de uma Noite de Verão", mas antes um terrível pesadelo). Contudo, à semelhança de Charlie, o par heróico a tudo consegue sobreviver, ultrapassando as dificuldades que vão surgindo, mantendo-se firme, digno e autêntico nos seus sonhos (o seu aspecto físico é bem mais agradável do que o dos outros, embora aqueles olhos... enfim...), conquistando o merecido "happy end" (até o necessário desaparecimento de Emily é tranquilamente poético e lindíssimo), deixando-nos com um sorriso nos lábios e, quiçá, uma lagrimazita no canto do olho, as estereotipadas reacções a uma história como esta (mas as mais genuínas, não?).<BR/><BR/>Laços familiares completamente corrompidos e deturpados, um mundo cinzentão e aterrador, um sobrenatural espectacularmente colorido, vivo e alegre... é caso para dizer: e agora, quando será o próximo filme? Fico ansiosamente à espera.
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