Grandioso
Pedro Bras Marques
A projecção do desejo interior humano de que apareça alguém que reponha o “paradigma perdido”, aquele tempo inicial, de paz uterina, onde a harmonia e a justiça prevaleçam sobre tudo e onde os homens sejam, efectivamente, fraternos e livres é um arquétipo que a ficção-científica se tem encarregue de materializar. Neo, na trilogia The Matrix é um exemplo sobejamente conhecido, como também acontece com qualquer universo de Super-Heróis, com o Super-Homem à cabeça. A religião é outro plano onde a vinda dum “Salvador” é aguardada com ansiedade e esperança pelos crentes e, até na História e na Política, o fenómeno revela-se forte, como aconteceu entre nós com o “sebastianismo”. <br />Frank Herbert teve o dom de construir uma história em que doseou sabiamente as diversas vertentes duma abordagem messiânica. Chamou-lhe “Dune” e o livro tornou-se numa referência absoluta do universo da ficção-científica, influenciando centenas de autores em todas as áreas criativas e conseguindo fazer o sempre difícil cross-over para a literatura em geral. A história passa-se naturalmente no futuro, onde o universo conhecido está dividido por diversas “casas”, um pouco como no feudalismo. Uma dessas é a Atreides, de que Paul, figura central, é o mais jovem descendente. A luta com as demais rivais justifica-se pela necessidade de controlar o planeta Arrakis, único lugar do Universo onde se pode encontrar uma especiaria, a melange, uma espécie de “pedra filosofal”, que prolonga a vida e as capacidades humanas, além de ser a única forma de se alcançar viagens interestelares. A família Atreides desloca-se para Arrakis, mas acaba traída pela rival Harkonen. O pai de Paul é morto e ele e a mãe fogem para o deserto, onde além de vermes gigantescos, também lá habitam os Freman, os nativos do planeta que vêm no jovem a encarnação do messias libertador há muito anunciado nas profecias. <br />A história já havia sido alvo dum filme que fez história nos anos 80, realizado por David Lynch, com Kyle Maclachlan no papel de Paul Atreides, e duma série de televisão, ambos com enorme sucesso. É claro que o realizador de “Twin Peaks” não dispunha dos meios tecnológicos de hoje, mas não é isso que faz a diferença para a versão de Dennis Villeneuve. “Dune”, em 2021, tem uma dimensão metafísica que o primeiro não conseguiu alcançar. A sensação de que se está perante uma história “bigger than life”, em que a personagem principal é alguém capaz de verdadeiramente fazer mudar o Universo só se alcança no filme do canadiano. Além do mais, Villeneuve deslumbra-nos com cenários majestáticos, mas, ao mesmo tempo, niilistas. Não há qualquer receio em abarcar paisagens e construções gigantescas e colocá-las dentro do ecran, sem que percam o dramatismo esmagador da sua dimensão. Aliás, neste momento, não há nenhum realizador que consiga, tão bem como ele, fazer passar uma mensagem de teor metafísico. No mesmo âmbito, já ele o tinha feito em “Arrival” com a problemática do tempo não linear e em “Blade Runner 2049” com a questão do conceito de Vida. Isto para não falar na imaterialidade familiar em “Incendies” e em “Prisioners”, sem esquecer a sua interpretação para “O Homem Duplicado”, de José Saramago, em “Enemy”. Tudo isto para dizer que em “Dune”, Villeneuve confirma a excelência da sua visão, sem nunca perder a mão da fabulosa história que tem nas mãos, antes respeitando a sua dimensão e leituras. <br />Mas se o brilhantismo na realização e a excelência da fotografia já fariam de “Dune” um grande filme, daqueles que horam a essência da 7ª Arte, também é verdade que seria injusto esquecer os actores escolhidos, em especial, claro, Timothée Chamalet, seguro na sua composição duma personagem em crescimento, mas sem receio algum do futuro e, até, do destino que lhe está reservado e que ele vai intuindo. <br />Esta é a primeira de duas partes, sendo que a segunda ainda nem sequer entrou em produção. Aguardemos, portanto, até 2023, para confirmar se Dennis Villeneuve confirma o seu “magic touch”.
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