Vamos embebedar-nos?
João Delicado
É uma das conclusões possíveis. <br /> <br />É verdade. <br /> <br />O filme pode parecer um elogio ao álcool e às bebedeiras. <br />Mas o que me ficou a ressoar foram outros aspetos. <br /> <br />[SPOILER ALERT: pelo sim, pelo não, quem quiser preservar a virgindade mental em relação ao filme ‘Mais Uma Rodada’, guarde este texto para depois. Obrigado!] <br /> <br />Antes de mais, em relação à potencial ode ao álcool, diria que: <br /> <br />1) como em qualquer filme, conversa ou contacto com o diferente, não precisamos de concordar ou imitar o que nos é dito; e pode ser muito interessante abrirmo-nos com curiosidade ao que nos é partilhado - sobretudo para quem investiga o comportamento humano ou lida com seres humanos e se interessa por empatia e comunicação, isto é um procedimento básico, essencial; <br /> <br />2) o próprio filme evidencia os riscos associados aos excessos: há efeitos mesmo muito concretos, incluindo a perda de relações ou entes queridos; <br /> <br />3) e inclui até uma certa pedagogia quanto à dinâmica típica do vício: mostra por exemplo que, para manter o efeito, o vício pede cada vez maior quantidade e maior frequência; e coloca-nos também em contacto com a vergonha, a ocultação, a mentira, a separação, que às tantas são condição para conseguir manter o vício <br /> <br />Mas o que me ficou a ressoar foi: <br /> <br />1) o hino ao experimentalismo: aquele experimentalismo que nos permite explorar alternativas, em género pensamento lateral ou oblíquo: “e que tal experimentarmos algo diferente?”; “e se levássemos isto mesmo a sério?”; “até que ponto será benéfico levarmos isto?”; “e se isto correr mal, o que faremos?”; <br /> <br />2) o hino ao companheirismo e aos laços sociais: sabendo que o vício tem origem numa desconexão original - com os outros, com a vida, com a essência de cada um para consigo próprio; sabendo que o vício pode ser também potenciado e alimentado pela conexão que possamos ter com as ‘companhias erradas’; também é nas relações que podemos encontrar o lugar da redenção; <br /> <br />3) o hino à vida: o filme, a mim, conduziu-me por uma estrada insegura, em curvas e contra-curvas permanentes, sem saber bem onde me situar, onde me segurar - do género “ai, ai… onde é que isto vai parar?”; em vários momentos, estranhei ver o álcool como catalisador de uma vida mais feliz, mais encontrada e mantive uma posição de aversão à ideia de que aquilo poderia ser tudo uma ode ao álcool; mas o final chega como uma lufada de ar fresco, como um hino à vida: mostra que, para lá das nossas histórias, as luzes e sombras fazem parte e somos humanos na medida em que largamos a luta e resgatamos a dança com a vida. <br /> <br />Depois, vieram-me outras reflexões. <br /> <br />O filme - diz o realizador Thomas Vinterberg - não é sobre álcool. É sobre o descontrolo. A necessidade de descontrolo. E isso pode ser bastante disruptivo, especialmente para aqueles muito mentais, muito rígidos, mais identificados com as suas máscaras sociais. <br /> <br />Isso ligou-me logo à questão das três instância psíquicas de Freud: de como alguns de nós vivemos subjugados a uma repressão constante - também auto-imposta! - feita de proibições, obrigações e outras prisões típicas do ‘super-ego’, e de como isso gera uma tal tensão interna que nos vemos ‘obrigados’ a recorrer a escapes que descarreguem a pressão e aliviem a dor. <br /> <br />Não é necessário chegarmos às substâncias. Esse é o caminho mais fácil. <br /> <br />É o exemplo do Carnaval. É o exemplo das festas em que nos permitimos ir para lá das regras. <br /> <br />É o exemplo dos gritos e das gargalhadas descontroladas. É o exemplo das lágrimas. É o exemplo da intensidade desmedida nas relações sexuais ou no desporto. São tudo momentos de descarga. <br /> <br />Curiosamente, há quem varie entre o controlo absoluto - em que mantém um comportamento impecável, exemplar e uma imagem de extrema competência - e, depois, o total descontrolo - em que se permite até aquilo que é inqualificável, vergonhoso, condenável. <br /> <br />Enfim, o controlo e o descontrolo é todo um tema do comportamento humano. <br />O mais interessante é que a resposta não está nem num nem no outro. <br /> <br />A resposta está na dança entre um e o outro. <br /> <br />A resposta está no reconhecer ambas as dimensões e em aprender a articulá-las no nosso diálogo interno numa cada vez maior harmonia e integração de partes. <br /> <br />Essa fronteira indefinida faz parte da experiência humana que estamos aqui a fazer - a de celebrar a vida.
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