A face do nada
alma
"Last Days", do cineasta Gus Van Sant, poderá ser uma tremenda desilusão para um verdadeiro fã dos Nirvana ou de Kurt Cobain. De facto, não é um filme para fãs, nem dos Nirvana, nem dos de nenhuma espécie. É, isso sim, uma obra cinematográfica de grande qualidade, que segundo o próprio autor, fecha uma tríade denominada ciclo da morte (sendo os outros dois filmes: "Gerry", de 2002, e "Elephant", de 2003). Convém, contudo, esclarecer alguns pontos antes de partir para qualquer tipo de análise ao filme. O Grunge, do inicio da década de 90, será por definição uma fusão entre o Punk Rock e o Heavy Metal e terá sido criado em Seattle, inicialmente por uma banda chamada Green River, que originou o movimento do qual os Nirvana (com Kurt) viriam a ser o paradigma.<BR/><BR/>Ora, o Grunge (que por definição significa pó, terra), foi então formado por duas tendências distintas: o Punk e o Heavy. Estas duas linhas iniciadas nos anos 60/70 distinguem-se na sua forma de mais-valia. Enquanto que o Punk é puramente estético, formal, o Heavy é fundamentalmente técnico. Daí que as melhores bandas inspiradas pelo Punk sejam as que lhe seguiram a influência estética (ideológica), enquanto que as melhores bandas inspiradas pelo Heavy serão certamente as que lhe beberam a técnica.<BR/><BR/>Vejamos agora aqui um pormenor interessante: já existiam bandas que fundiam os dois géneros algum tempo antes dos Nirvana. Dessas bandas, as que faziam a mistura fina (leia-se estética Punk mais técnica Heavy), conseguiram resultados impressionantes, como os Pixies ou os Sonic Youth; por outro lado, as que misturavam os condimentos da forma inversa eram bandas comerciais de pouco valor artístico, como Bon Jovi ou Guns N' Roses. Daí que a novidade (e a mim afigura-se-me como a única) dos Nirvana, é que conseguiram fazer a coisa de modo inverso com resultados aceitáveis. Ou seja, foram buscar a sua estética à técnica do Punk e a sua técnica à estética do Heavy. Tornaram-se numa banda única nesse aspecto. Fundindo o alternativo com o comercial, mais uma vez, criaram de certo modo um alternativo "mainstream" que agora se faz notar claramente, até com sons muito diversos do dos Nirvana. Abriram aí uma brecha, não sei se para bem ou mal, mas isso vai além do que me proponho analisar.<BR/><BR/>Para ajudar a que os Nirvana se tornassem de alguma forma míticos, os anos 80 (e o seu folclore musical), criaram uma grande nostalgia por sons e figuras dos anos 60 e 70. Auxiliado pelo filme de Oliver Stone, "Doors – O Mito de uma Geração", existiu um ressurgimento de interesse pelo grupo (os Doors) que trouxe ao de cima a figura mítica do seu cantor e poeta, Jim Morrison. Os Radiohead (uma das bandas mais interessantes da década de 90), escreveram um tema em 1990 que retrata de algum modo esse espirito: "Grow my hair, Grow my hair I am Jim Morrison. Grow my hair, I wannabe wannabe wannabe Jim Morrison".<BR/><BR/>Este tema, chamado "Anyone can play guitar", fala um pouco de como estas figuras míticas do passado se vieram a banalizar no início dos anos noventa. Qualquer um tinha o cabelo comprido e tocava guitarra, bastando para se sentir próximo do seu ídolo, Morrison, Hendrix, Vicious, etc. Criou-se então um desejo nessa geração, distante no tempo das grandes figuras míticas do Rock (mesmo as que estavam vivas encontravam-se já, na maioria dos casos, longe de ser modelos para novas gerações de adolescentes), de proximidade com os seus ídolos do passado, ou então, pelo aparecimento de um novo ídolo na sua própria geração.<BR/><BR/>O suicídio de Kurt em 1994, aos 27 anos, juntou a fome com a vontade de comer. Criou-se então um ídolo, mas de carácter diferente. Sem a inocência e pureza dos anos 60, anacrónico, sem a ignorância que fez dos originais ídolos inconscientes. Neste aspecto, Kurt assemelha-se à parodia que Bono dos U2, que se auto-intitula estrela do Rock e se colocou na prateleira do supermercado, faz aos artistas que sobrevivem. Kurt fez o mesmo, mas aos que sobremorrem. Um ídolo rock pós-moderno, se quisermos.<BR/><BR/>E foi neste conceito, em vez de no próprio Kurt, que Gus Van Sant pegou para realizar a sua obra. Este autor, apesar de se interessar por temas relacionados com a América e os levar ao grande ecrã, tem pouco de americano na sua maneira de fazer filmes. Para quem viu "Elephant" e lhe dedicou alguma atenção, é fácil perceber quando digo tratar-se de um autor que pelo seu modo de filmar (a colocação da câmara), luz, a maneira como o som é tratado, entre outras coisas, se assemelha mais a autores europeus do que propriamente a realizadores seus conterrâneos (ressalvem-se as devidas excepções).<BR/><BR/>A sua fotografia (e desculpem se soo herético) aproxima-se, quanto a mim, à de um Manoel de Oliveira (um dos maiores realizadores do mundo), embora não se possam comparar os autores em outros aspectos, talvez mais importantes. Van Sant trabalha, julgo, com a temática do niilismo, e do niilismo entre os jovens fundamentalmente. Tanto "Elephant" como "Last Days" surpreendem pela falta de intriga, de narrativa no sentido mais clássico. Em "Elephant", é notório o esforço de certos acontecimentos para se tornarem história, mas sem qualquer efeito. Tudo o que possa ser visto como um acender do enredo rapidamente se esfuma, dando lugar ao vazio. É como se o autor procurasse mostrar que não há justificação sustentável para o trágico desfecho do filme. Como se tentasse filmar o próprio niilismo, sendo o tipo de narração utilizada puramente imagético.<BR/><BR/>"Last Days" em muito se assemelha a "Elephant", excepto que introduz o conceito Cobain, tal como já foi definido acima. Não seria necessário que se tratasse obrigatoriamente de Cobain, mas assim sendo, o autor pôde jogar com o imaginário colectivo do seu público e introduzir elementos alheios ao filme mas que lá estão necessariamente por implicação biográfica ou mitológica. O personagem principal do filme, Blake (supostamente Kurt Cobain), não tem sequer a oportunidade de mostrar o que sente ou pensa. É um personagem praticamente mudo, ao qual se ouvem por vezes certos grunhidos, mas que não chega, ao longo do filme, a articular uma frase completa (excepto na cena em que pega na guitarra e canta uma canção).<BR/><BR/>De resto, o seu comportamento segue a mesma linha de acção. Desde noites dormidas no bosque contíguo à casa onde se encontra, como despropositadamente vestir roupa de mulher para atender um vendedor das Páginas Amarelas. Talvez esta linha de comportamento errático seja a principal razão que leva a que um admirador de Cobain se sinta traído. Não seria aquela a maneira como gostaria de ver o seu ídolo recriado. Mas sim mais à maneira de Stone, quando levou Val Kilmer a encarnar Jim Morrison. A isto junta-se uma cena em que, vinda não se sabe de onde, uma mulher que não se sabe quem é, mas que pela idade e pela maneira como fala com Blake se poderá concluir que seja a sua mãe, chama a este "cliché do Rock".<BR/><BR/>Gus Van Sant joga também com o facto de Cobain ser, como era sabido, toxicodependente, uma vez que os efeitos da droga poderão ser deduzidos do seu comportamento, embora não exista qualquer cena em que se observe consumo de drogas, apenas leite com cereais. Da mesma forma, a cena do suicídio é um exemplo de bom gosto. Não se vê o acto, não se ouve, Blake aparece morto numa bela manhã e o realizador mostra a sua alma a deixar o corpo e subir (aos céus?), dando-lhe o toque de associação final, óbvio, com Jesus Cristo. A imagem do messias, será, em ultima análise, o pano de fundo para todos estes ídolos que morrem precocemente, numa espécie de sacrifício público, e mais uma vez a utilização por parte do autor do imaginário colectivo.<BR/><BR/>Concluindo: "Last Days", não o considerando como um dos melhores filmes que vi, é sem dúvida uma obra poética de grande competência e qualidade, técnica como artística.
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