Um Herói
Título Original
Ghahreman
Realizado por
Elenco
Sinopse
Críticas Ípsilon
O protagonista do filme de Asghar Farhadi é um herói?
Um conto sobre a moralidade como poço sem fundo.
Ler maisCríticas dos leitores
Matizes da verdade
Pedro Brás Marques
Começámos por observar Rahim, um homem ainda jovem e bem parecido, a chegar a um local arqueológico. Dirige-se a uma escada e inicia a subida. O realizador podia ter optado por cortar ali a cena e passar logo para o destino final da personagem, mas opta por a acompanhar em toda a subida, lanço a lanço, durante o que parece ser uma eternidade de tempo. Uma vez chegado lá acima, onde trabalha o seu cunhado Hossein, casado com a sua irmã, ficámos a saber que aquele é o local funerário de um dos heróis do Irão, o Rei Xerxes.
Gerir o tempo, em cinema, é fundamental e só está ao alcance de alguns. Manoel de Oliveira fazia-o magistralmente e Ashgar Farhadi não lhe fica atrás. Ao mostrar Rahim subir, degrau atrás de degrau, num movimento monótono e aparentemente inconsequente, obriga o espectador a questionar o sentido do que está a ver. Na verdade, uma escada é algo que serve para ligar planos díspares, que permite aceder ao que está em cima, do nível material para o espiritual, do plano terreno para o celestial. Desde o episódio bíblico da “escada de Jacó” aos Led Zeppelin, exemplos não faltam. E foi precisamente isso que o realizador pretendeu, brilhantemente, ilustrar: que aquele homem ia ascender a outro plano, a outra percepção da sua existência.
Com efeito, Rahim estava ali porque acabara de sair da prisão, beneficiando duma saída provisória. No Irão, as dívidas dão cadeia e ele devia dinheiro ao seu ex-cunhado, irmão da sua falecida mulher. Por um acaso, a sua companheira encontrara um saco com algumas moedas em ouro que tentaram vender para, com o produto da venda, abater à dívida e, talvez, conseguir a liberdade. Mas o preço do grama de ouro estava baixo, eles desistem da ideia e, por força da sua irmã, Rahim acaba por decidir devolver a saca e as moedas a quem conseguir provar ser dono. Uma mulher aparece, comprova a propriedade e leva o saco. Rahim vê a sua atitude louvada por amigos e conhecidos, a história salta para as televisões e ele torna-se um herói aos olhos de todos, em especial do filho, um miúdo de nove anos afectado por gaguez. Mas o ex-cunhado não acredita na história, aqui e ali vão-se gerando mentiras sobre mentiras para ver se aquilo bate tudo certo e a coroa de glória de Rahim começa a perder brilho…
Como quase sempre acontece com os filmes de Ashgar Farhadi, também em “Um Herói” há uma base moral que é questionada. Neste caso, são os conceitos de verdade e de honra. A primeira é cinzenta mas quase sempre vista a preto e branco. Neste caso, o gesto de Rahim é inequívoco, mas a motivação anterior e as “correcções” posteriores vão toldar completamente a visão do episódio. Porque ele fez bem, mas de mentira em mentira, acaba por enformar algo que se assemelha a imposturice. Depois, a questão da honra, prende-se com o passado criminal dele, a tentativa de o expurgar e a dificuldade em ver aceite a sua palavra. Há uma “explosão” do ex-cunhado que enforma muito bem esta dualidade, quando pergunta mesmo que honra é esta de Rahim, de ter devolvido o que não era dele, quando comparada com a dele que emprestou o dinheiro para o ajudar e não o tem de volta?
Portanto, em “Um Herói”, temos os temas recorrentes de Farhadi, como a culpa, o passado, os efeitos imprevistos e catalisadores da mentira, a importância fulcral da família, entre outros que já conhecíamos de “O Passado”, “O Vendedor”, “Todos Já Sabem” e, especialmente, dessa obra-prima que dá pelo nome de “Uma Separação”. Aliás, arriscaria afirmar que “Um Herói” é o melhor desde esse belíssimo drama familiar. Uma realização serena e uma narrativa quase sempre objectiva, são imagem de marca dum realizador que mais do que julgar, pretende colocar o espectador a pensar e a problematizar sobre o que está a ver. Aliás, repare-se no detalhe do artigo indefinido: não é “o herói”, mas “um herói”. Ou seja, não se trata duma situação concreta e identificada, antes uma que poderia ocorrer em qualquer lado e a qualquer um.
4 estrelas
José Miguel Costa
Após ter-nos presenteado com filmes como "Uma Separação" (2011), "O Passado" (2013) e "O Vendedor" (2016), o iraniano Asghar Farhadi tornou-se num dos meus realizadores incontornáveis.
Eis que retorna aos nossos ecrãs, depois de uma falhada incursão pelo cinema ocidental ("Todos Sabem" - 2018), com "Um Herói", uma co-produção franco-iraniana, que lhe valeu o Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes.
Como é seu apanágio, coloca-nos perante um drama, simples e de grande intensidade emocional, com contornos morais e éticos ambíguos, em que ambas as partes envolvidas têm a sua razão/explicação válida para justificar as respectivas condutas comportamentais (nada é simplesmente "branco ou preto", ainda mais numa sociedade desumanizada em que os costumes se regem pelos ditames de uma opressora lei islâmica).
A história, que irá manter-nos numa ansiedade ininterrupta acerca do destino de um improvável herói nacional, inicia-se com a saída do pacato Rahin da prisão (na qual se encontra detido devido ao incumprimento do pagamento de uma divida ao seu ex-cunhado, em consequência de uma burla de que foi vitima por parte do seu sócio de negócios), em regime precária, por um período de dois dias.
Enquanto se encontra no exterior, o protagonista (excepcionalmente interpretado Amir Jadidi) depara-se perante o dilema de devolver uma mala encontrada (com 17 moedas de ouro no seu interior) numa paragem de autocarro, pela sua namorada secreta; ou, pelo contrário, aproveitar tal quantia para liquidar parte do débito contraído e, desse modo, livrar-se no imediato da reclusão.
Será que existem verdadeiros heróis? Estes não serão, na generalidade dos casos, um mero produto fabricado pelos mass media/redes sociais e explorados, em benefício próprio, por determinadas organizações (até ao momento em que tal lhes interesse)? Vejam o filme e decidam por vocês ...
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