Nem santo, nem dragão
Carlos Claro
De São Jorge, o santo mártir, consta que nasceu na Anatólia, no séc. III, e que seguiu a carreira militar, tendo chegado a tribuno e guarda pessoal do Imperador romano Diocliciano. O seu martírio resultou de um édito que impunha a prisão de todos os soldados que fossem cristãos. Sendo-o ele próprio, Jorge opôs-se veementemente a tal medida, primeiro recusando riquezas oferecidas pelo imperador (que não queria perder um dos seus melhores tribunos...) e depois resistindo à tortura. Acabou por ser decapitado. <br />Também de S. Jorge cantam as baladas medievais que matou um dragão que assolava uma aldeia na Líbia. Quando aquele já havia consumido todas as donzelas da aldeia, restando a filha do rei, o santo guerreiro interpôs-se e matou a besta. Este mito entra em ressonância com vários outros, como o de Perseu, e Andrómeda, e o de Siegfred. <br />E foi este santo, herói e mártir, puro, intrépido e inflexível, reconhecido por (quase) todo o Cristianismo e mesmo pelo Islão (por algum…), padroeiro de Portugal, da Catalunha, da Inglaterra e vários outros países, capitais e cidades importantes, que serviu de inspiração para inúmeras obras clássicas de escultura e pintura (Rafael, Donatelo, Reubens, Delacroix, Veronese...). <br />Não ambicionou, portanto, pouco, Marco Martins, quando decidiu chamar São Jorge ao seu último filme. E a toda esta carga simbólica juntou ainda inúmeras referências cinematográficas de primeira água. De facto, o espectador mais atento poderá notar piscadelas de olho a O Touro Enraivecido de Scorcese, ou à câmara irrequieta dos Dardenne, ou ainda o desespero dos personagens de Iñárritu. Indo um pouco mais longe, poder-se-á mesmo ver na personagem Jorge, encarnada por Nuno Lopes, ecos do herói inocente, mas ingénuo, do Ladrão de Bicicletas, de De Sica. E há, que dizê-lo, todas estas referências estão incluídas com propósito e estão bem feitas. <br />A história resume-se à de algumas semanas da vida de Jorge, pugilista profissional (?) em final de carreira, que vive com os pais num bairro degradado, algures em Lisboa ou arredores. Jorge tem um filho de uma mulher Brasileira, negra e imigrante, que vive de um trabalho mal pago e da ajuda que Jorge lhe vai dando. Presume-se que tenham sido casados, mas apesar de se darem bem, dentro do possível, e de se manterem íntimos, não vivem juntos. O principal culpado da situação é o pai de Jorge, indivíduo assediador, racista e xenófobo, que exerce violência psicológica sobre o filho, tanto enquanto pai como como dirigente da secção de boxe do clube onde Jorge pratica. Este ambiciona ser independente e ter habitação própria, de forma a reconstruir o seu próprio núcleo familiar. E acaba por arranjar emprego numa agência de agiotagem. Ele é o “músculo” de uma equipa de cobradores que vai visitando particulares, e pequenos empresários, a contas com dívidas que tem imensa dificuldade em pagar. <br />Jorge, apesar de toda a violência com que lida diariamente, é um indivíduo de coração puro. Dir-se-ia mesmo que conserva algo de criança na sua maneira de ser. Há uma cena de antología, certamente a melhor do filme, em que vai, juntamente com os outros cobradores, visitar o dono de um restaurante de luxo. Lá dentro, existe um aquário onde nada um belo peixe de barbatanas protuberantes, pretas, com listras brancas, que formam como que uma armação à sua volta. Jorge fica tão impressionado com o animal, que tenta comunicar com ele. E na visita seguinte, com a equipa preparada para tudo, ou seja para uma actuação violenta por intermédio dos punhos do nosso protagonista, este leva, na manga do casaco, um pedaço de pão que, às escondidas, coloca, em migalhas, dentro do aquário. <br />“So far, so good”, mas as coisas complicam-se. Alguns dias depois Jorge não tem coragem para cumprir o seu papel e é abruptamente despedido. E a namorada tem planos para voltar ao Brasil. E Jorge já tem um apartamento em vista, mas necessita de dinheiro para pagar os 4 meses em avanço exigidos... Decide então passar à acção e recomeçar o trabalho onde o tinha deixado. No seu perfeito juízo persegue e ataca violentamente o cozinheiro. Este termina, em desespero, por se jogar para uma queda suicida… <br />Jorge é uma vítima. Disso não há dúvidas. Mas será Jorge inocente? Até esta última cena, nada indica que não o seja. Não há nada a apontar de imoral no seu comportamento até ao momento em que decide usar a violência, fora do ringue, para benefício próprio. Poder-se-ia até dizer que o argumento não é realista ao apresentar um personagem tão ideal num meio onde impera a lei do mais forte e a luta é pela sobrevivência. Na vida real ninguém é perfeito e ainda menos quando o meio não ajuda. <br />Mas trata-se de S. Jorge, certo? O problema é que a santidade, leia-se comportamento moralmente impecável, esfumou-se na referida cena. Jorge, quando muito, passou a ser um anjo caído. Mas talvez nem isso, porque o argumento não lhe oferece qualquer hipótese de redenção. O sofrimento do personagem é visível na expressão do Nuno Lopes, mas nada indica que sofra pelo arrependimento. Somos levados a pensar que o que o incomoda não é a perda de uma vida humana, pela qual ele tem culpa moral (pelo menos…), mas a sua própria eminente destruição, consequência das suas próprias acções. Esta história não tem nada a ver com a do Santo Jorge. Jorge, o personagem, é no final do filme culpado de um crime. É vítima, mas também carrasco. <br /> <br />“São Jorge” é enquadrado por dois esclarecimento em relação ao suposto contexto sócio-político da narrativa, na forma de inserção de textos, tanto no princípio, como no fim do filme. No início lê-se sobre a crise da dívida soberana Portuguesa, a chegada da troika a Portugal e o aparecimento de agências de cobranças difíceis. E no final, sobre a proliferação destas últimas. Mas se pusermos de parte que é falado em Português e que foi filmado em Portugal (haverá certamente quem reconheça os locais dos exteriores…), o que é contado poder-se-ia passar (quase...) em qualquer lugar. Não me lembro de nenhuma referência diegética à Troika, à UE, etc. O filme é completamente mudo em relação a isso. O mesmo em relação às especificidades da crise Portuguesa. <br />Consta que, na génese, “São Jorge” teve um início próximo do de “1001 Noites”, de Miguel Gomes e, supostamente, a crise e a troika são pontos comuns, mas os caminhos seguidos são radicalmente diferentes. Enquanto “1001 Noites” se mantém firmemente ancorado na realidade, tanto na parte documental como na ficcional, “São Jorge” deriva fortemente para a ficção e a alienação. Ao espectador mais desatento será difícil ver em São Jorge mais do que uma história passada num meio que não é o dele, que sabe ter um fundo de verdade, mas que tem dificuldade em relacionar com o seu dia-a-dia. Este espectador, se tiver um gosto apurado, apreciará a beleza estética do filme e uma interpretação de encher o olho do Nuno Lopes, mas ficará por aí. <br />De facto, comparemos alguns detalhes de ambos os filmes em relação à sua relação com a realidade (usando só “1001 Noites parte 1: O inquieto”…) <br />-A crise “da troika” teve culpados? Se sim, eles são citados? Afirmativo para “1001 Noites” - veja-se o capítulo “Os Homens de Pau Feito”. Negativo para São Jorge. <br />-E de que maneira o cidadão comum foi afectado? Exemplos nos monólogos dos “Magníficos”. Nada a declarar em “São Jorge”. <br />-E houve beneficiários da crise? Quem? Inconclusivo para “1001 Noites” mas negativo “São Jorge”. E bem sabemos como a crise levou a falências fraudulentas e pôs a descoberto monumentais calotes a bancos. Num filme que aborda o mundo das cobranças difíceis, nem uma piada sobre isso... <br />E o dragão? (São) Jorge mata o dragão no filme do Marco Martins? Se o dragão é a crise, nem o fez, nem o podia fazer. Seria talvez a pobreza… mas também não. Não conseguiu... <br />Nem Santo, nem Dragão! Ora bolas! E de quem será a culpa? <br />Sobretudo de um mau guião. <br />Marco Martins, realizador e argumentista, e Ricardo Adolfo, argumentista, não conseguiram, ou não quiseram, estar à altura do que se propuseram. “São Jorge” é um filme que se vê bem, mas não é um grande filme. Todos os defeitos acima apontados eram passíveis de ser corrigidos e havia muitas maneiras de redimir o personagem principal. Parece que o objectivo foi o de evitar toda a polémica, fazendo um filme que aparenta ter preocupações sociais mas que visto ao pormenor não cumpre o que promete. É pena… mas não se fazem omeletes sem partir ovos.
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