Ontem como Hoje
Ricardo Pereira
O director Todd Haynes deixa de lado o glam rock que ele tão bem retratou em “Velvet Goldmine” (Prémio Especial do Júri em Cannes/98) para embarcar neste belo filme de época, ambientado nos anos cinquenta. É tempo de macarthismo, segregação racial, repressão sexual e feminina. A partir do momento em que a perfeita dona-de-casa Cathy (Julianne Moore) flagra seu marido, Frank (Dennis Quaid), beijando um homem, o seu mundo começa a desmoronar. Entra em cena a amizade dela com o jardineiro negro, Raymond (Dennis Haysbert), e está montada a moldura para um conto sobre amor e preconceito. É curioso imaginar porque um director moderno e jovem como Todd Haynes (nascido em 1961) foi seduzido a embarcar num melodrama clássico ao estilo do dinamarquês radicado na América Douglas Sirk (1897-1987), autor de trabalhos como “Imitation of Life”(59), “All That Heaven Allows”(56) – que tem até um enredo ligeiramente parecido com “Longe do Paraíso” – e “Written on the Wind”(57). Em todo caso, o desafio funcionou. O filme respira e nunca parece datado. Mesmo o apuro com que foram tratados todos os detalhes, das cores das roupas à iluminação, não sufoca a história. Ao contrário, tudo serve para fazê-la caminhar, seja a obsessão de Cathy pela arrumação e a limpeza, seja a contenção da voz e dos gestos de todos os personagens. Muito do que se pretende contar aqui está nas coisas que não são ditas, naquilo que se vê por uma brecha nesta superfície tão colorida, tão engomada, tão brilhante, mas pronta a quebrar-se ao mínimo golpe de realidade. Por toda a sua composição esmerada, o filme funciona como um túnel do tempo, uma caixinha de música, onde tanta perfeição aparente é um contraponto ao sufocamento da voz natural das coisas que teima por resistir atrás das portas das casas, que escondem tantos escândalos discretos. Para manter tantas aparências, só resta o sacrifício. Com uma trilha orquestral gloriosa de Elmer Bernstein, o filme é uma jóia em todos os níveis técnicos, com uma fotografia impecável de Edward Lachman e direcção de arte sumptuosa de Mark Friedberg. Em meia dúzia de filmes a partir de 1985 (“Assassins: A Film Concerning Rimbaud”), o realizador Todd Haynes vem desenvolvendo uma interessante obra autoral. Em “Poison”, de 1991, voltou-se para Jean Genet; em “Velvet Goldmine”, de 1998, explorou as possibilidades dramáticas do universo do glam rock, por meio de uma narrativa em puzzle como a do clássico “Citizen Kane”. O cinema de Haynes investiga a sociedade consumista e repressora e também a linguagem. A partir de “Safe”, é mais fácil entender o que Todd Haynes procura transmitir com “Longe do Paraíso”: a noção de que, apesar da auto proclamada queda das barreiras sociais e raciais nos EUA, o preconceito e a incapacidade de saber lidar com a diferença é algo que continua se propagando como um vírus que assume diferentes formas. Em “Longe do Paraíso”, durante uma festa, uma personagem comenta na frente de um “garçom” negro que não há negros na cidade em que vivem. Em “Safe”, durante o jantar da família, servido pela empregada latina, o menino mostra aos pais a redacção que fez na escola, sobre o perigo que a presença de negros e latinos em Los Angeles representa. Esta invisibilidade das minorias soma-se a outro aspecto determinante: a dificuldade de se exprimir, perante uma sociedade que privilegia as aparências e a norma, os nossos desejos mais profundos.
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