Calvário social
Pedro Brás Marques
Nestes tempos de crise e tensão social, haverá espaço para a solidariedade? É esta pergunta que inquieta Sandra, operária duma fábrica de painéis solares que quer regressar ao seu posto de trabalho, após baixa médica, mas que se vê confrontada com um dilema arquitectado pelo gerente: os restantes dezasseis trabalhadores irão escolher, por voto secreto, entre receber um suplemento retributivo de 1000 euros ou aceitar Sandra de volta. A escolha duma opção implica a rejeição da outra. <p> Ainda não completamente recuperada duma depressão, carregando aos ombros a perspectiva do desemprego, Sandra opta por contactar a cada um dos colegas e para lhes pedir que votem a favor da manutenção do seu emprego. Vai demorar “Dois Dias, Uma Noite”. É um longo calvário, com dezasseis estações, onde a alegria, a tristeza, o desalento e a esperança se revezam nas lágrimas que escorrem pelo rosto da personagem interpretada por Marion Cotillard. Só a companhia do compreensivo e encorajador marido a vai afastando da desistência e duma queda fatal no vazio. </p><p> E que interpretação, meu Deus! A oscarizada actriz francesa é a personificação da dor e da mágoa. Nem eram precisos diálogos para se perceber o quanto dilacerada é a sua existência, o quanto amargurados são os seus dias. A voz embarga-se, o olhar perde-se, o desespero instala-se. Cotillard ocupa o ecrã quase em permanência, e a sensação de proximidade para com o espectador, amplificada pela realização, torna-nos cúmplices do seu sofrimento. </p><p> Os irmãos Dardénne optaram, como sempre, por grandes e médios planos, quase nos fazendo sentir estarmos dentro das conversas, tudo amplificado pelo recurso a luz natural e a um uso de câmara que evoca a agitação dos documentários. Os filmes desta dupla belga envolvem quase sempre questões sociais e o seu impacto na instituição familiar: foi assim com “Rosetta” e “A Criança”, obras que lhes deram a Palma de Ouro, em 1999 e em 2005. Isto sem esquecer as relações filiais patentes em outros dois filmes, “A Promessa” e “O Rapaz da Bicicleta”. Como em todos os filmes dos irmãos Dardénne, também neste transparece uma aura de proximidade e de “simplicidade”. Não há sofisticação, as personagens parecem comuns e saídas do quotidiano, e os dramas recordam-nos situações que todos temos próximas ou de que já ouvimos falar. Talvez por isso, sentimo-nos facilmente tocados pelo destino das personagens. A nossa vontade foi de abraçar Sandra e chorar com ela. O Mundo não é um lugar bom, mas há esperança em mudá-lo. No final, se ele não mudar, então só resta mudarmos nós. Ainda bem que Sandra percebeu. </p>
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