Little do we know...
Rita (http://cinerama.blogs.sapo.pt/)
A vida de Harold Crick (Will Ferrell) um solitário e entediante (e entediado) empregado das finanças muda drasticamente quando começa a ouvir uma voz feminina narrar todos os seus actos quotidianos com detalhes assustadoramente precisos. Sem saber se se trata apenas de uma transcrição ou de uma determinação, o verdadeiro pânico de Harold chega quando a voz lhe revela que a sua morte é iminente. Harold procura então a ajuda do professor de literatura Jules Hilbert (Dustin Hoffman), que o aconselha a transformar a sua vida numa comédia (e evitar o pior desfecho), devendo por isso iniciar um improvável romance com a sua mais recente cliente, Ana Pascal (uma sempre mágica Maggie Gyllenhaal), uma jovem pasteleira a quem Harold está a fazer uma auditoria pela sua recusa em pagar a parte dos seus impostos que iria para os gastos de defesa. Mas a voz na cabeça de Harold acaba por se revelar de Kay Eiffel (Emma Thompson), uma neurótica escritora em pleno bloqueio criativo e cujo único contacto com o exterior é através de Penny Escher (uma subtil Queen Latifah), uma assistente enviada pela editora de Kay para forçá-la a terminar o livro dentro do prazo. <BR/><BR/>Este filme herda o seu título de uma frase de Mark Twain que diz que a verdade é mais estranha que a ficção por esta última estar limitada às possibilidades, ao contrário da primeira. Desconstruindo a criatividade, o inteligente e imaginativo argumento do desconhecido Zach Helm, que lembra Charlie Kauffman mas num tom menos surreal, aborda o tortuoso mundo da escrita, da forma como as obras têm uma forma quase orgânica de irem crescendo e da complexa relação, e responsabilidade, entre o criador e as suas personagens - aqui numa acepção verdadeiramente divina, com o poder da vida e da morte (quantas vezes não nos revoltamos nós mesmos contra o nosso?). <BR/><BR/>Seria fácil se houvesse um narrador para as nossas vidas que decidisse tudo, dizendo-nos quem ser e o que fazer. Mas isso seria tão aborrecido! Por isso o filme de Marc Forster (“Monster’s Ball”, “Finding Neverland”) promove o livre arbítrio, instigando-nos a tomar as rédeas da nossa vida e aproveitá-la ao máximo, percebendo que as pessoas e coisas que mais tomamos por certas são muitas vezes aquelas que fazem a vida valer a pena. E se, de vez em quando existem vozes na nossa consciência, talvez devêssemos escutá-las com mais atenção, em vez de as calarmos nos gestos mecânicos de todos os dias. <BR/><BR/>Com o ritmo marcado pela corrida contra o tempo, “Stranger Than Fiction” faz uma fusão entre o intelectual e o emocional, sem menosprezar nunca os efeitos tónicos de uma boa bolacha. E fá-lo sem cinismos, equilibrado entre a amargura e a esperança, o doloroso e o romântico. Da mesma forma como, objectiva e subjectivamente, a vida e a arte balançam entre a comédia e a tragédia, e como, num doloroso dilema, a simples existência humana pode ser pesada contra a possibilidade de uma obra de arte imortal. <BR/><BR/>A óptima interpretação de Ferrell, cheia de vulnerabilidade, faz pensar em Bill Murray e na forma como conseguiu eliminar as excentricidades da comédia e entrar em meandros mais subtis e dramáticos (“Melinda and Melinda” tinha já sido um bom exemplo). <BR/><BR/>“Stranger Than Fiction” revela o extraordinário poder da ficção para abordar o real. Todos somos personagens na nossa própria vida e, como Harold, também “little do we know...” do que está para vir. Melhor assim. <BR/><BR/><BR/>7/10<BR/>
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