Tiros em Columbine
Ricardo Pereira
Agressivo, polémico e incisivo como poderia se esperar de qualquer filme de Michael Moore. "Bowling for Columbine" é também um filme sentido, um trabalho pessoal, e nunca um produto sensacionalista disposto a tornar o cineasta uma celebridade mais do que realmente colocar questões sobre o seu tema. Apesar de manipulador na forma como conduz o documentário, essa manipulação se contrapõe com a paixão com que abraça seus argumentos e pela indignação, o que mais que justificam seus possíveis exageros. Investindo raivosamente contra os media, o que torna a sua posição com o cinema num viés particularmente político, e ainda mais particularmente corajosa, "Bowling for Columbine" é um filme apaixonado, vigoroso e urgente. Pontos mais que suficientes para torná-lo um filme recomendável. O cineasta Michael Moore poderia ter feito de "Bowling for Columbine" uma sátira vazia, seguindo um punhado de donos de armas malucos e provocando na plateia boas risadas. Mas o seu filme é bem mais ambicioso e chega a conclusões pertinentes. Moore é um documentarista que leva ao pé da letra a ideia da "câmara como arma". Às vezes a sua militância política atropela a sua argumentação; às vezes fatos históricos são misturados sem muito rigor. Mas o facto é que raras vezes o cinema americano foi capaz de olhar para o próprio umbigo de forma tão crítica. O seu discurso durante a entrega do Óscar já foi um soco no estômago do "establishment" norte-americano. Para quem não se recorda (acho difícil), Moore era o roliço realizador que, ao receber a estatueta de melhor documentário, atacou o presidente George W. Bush chamando-o de presidente "fictício", responsável por uma guerra "fictícia". Pois bem, as suas palavras, transmitidas ao vivo para um bilhão de espectadores, transformaram-no em estrela da festa e ampliaram sua fama de "persona non grata" na Casa Branca. O mote de "Bowling for Columbine" é uma daquelas tragédias que uma vez por outra abalam a América: em 1999, na Columbine High School (Colorado), dois estudantes assassinaram 12 colegas e um professor e depois se suicidaram. Na época, foram apontados inúmeros "culpados" que faziam parte do quotidiano dos garotos, as músicas de Marilyn Manson, o desenho animado South Park, os jogos violentos, o cinema. Mas os jovens assassinos jogavam bowling também. A irónica pergunta do cineasta, então, é se não seria este jogo o verdadeiro responsável pela tragédia. Daí o título "Bowling for Columbine", ao pé da letra, "Jogando bowling por Columbine". Na escola de Eric Harris e Dylan Klebold, os jovens assassinos, os garotos que não têm físico nem habilidade para o futebol, praticam bowling. Para Moore, o acesso a armas-de-fogo é o principal responsável pela chacina em Columbine. Moore baseia o seu principal argumento numa estatística que aponta que mais de onze mil pessoas morrem assassinadas por armas de fogo actualmente nos Estados Unidos. A primeira sequência do filme é antológica. O próprio Moore entra numa agência bancária – North Country Bank – para abrir uma conta corrente e, como brinde, ganha um arma. Afinal, é preciso ter uma arma em casa – pelo menos é o que os americanos acham. Se nas longas anteriores, "Roger and Me" e "The Big One", o seu alvo era mais precisamente a América das grandes corporações, "Bowling for Columbine" amplia o foco para atingir outras instâncias, ou seja, o eixo paranóia-consumo-guerra levado ao extremo pela Administração Bush. Quem pensar que Michael Moore é um sensacionalista mais preocupado com o sucesso do seu filme do que realmente com o tema do documentário em si irá se surpreender com o filme. Algumas cenas mostram sem nenhuma dúvida o tom humano que Moore confere ao seu documentário. Não há por exemplo câmaras escondidas. É marcante uma cena em Flint quando uma professora vira as costas à câmara quando não consegue falar mais nada sobre a tragédia, e como a câmara se mantém respeitosamente, evitando pegar a lágrima da mulher em "close", e como Moore se aproxima da mulher, dando as costas à câmara e ficando ao lado dela. Quando a van de um executivo arranca, comprovando a negativa do empresário em responder a Moore, sua cara de desolação mostra nitidamente seu envolvimento. Outra cena de inegável impacto é quando Moore pede que o actor Charlton Heston, presidente de honra da associação de defensores do uso de armas, olhe para a foto da criança morta em Flint e a deixa carinhosamente na entrada da casa do actor.
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