Um filme extraordinário!!!
Sandra Fernandes Dinis
Um relato de amor, de um amor estranhamente sentido e vivido. Um amor solitário, obsessivo, ao mesmo tempo infantil e perigoso. Estranhamente arrebatador para o personagem (Okrasa), um homem que trabalha num crematório, cuja única companhia são os corpos com que lida e a sua avó por quem nutre uma ligação de amor, protecção e dedicação de toda uma vida. Uma vida simples, demasiado simples, habitada por uma solidão sempre presente e enfatizada por uma timidez criada pelas próprias circunstâncias. A sua solidão torna-se insuportável no dia em que a avó morre. Acaba por combate-la com o estranho amor que passa a sentir por Anna.
O personagem presencia a violação de Anna e incapaz de lhe prestar auxílio vê-se, no entanto, na obrigação de participar a ocorrência à polícia, que acaba por o julgar como o culpado do crime do qual não foi autor. Sente-se responsável por ela e a sua vida passa a ganhar sentido por ela. Anna traduz a sua liberdade interior.
Já em liberdade física, descobre que Anna é uma enfermeira que vive num dos anexos do Hospital onde trabalha e que esse anexo que habita fica a apenas alguns metros de distância das traseiras de sua casa.
A partir desta incrível descoberta o personagem passa a espiá-la e a visitá-la à noite, entrando furtivamente pela janela do seu quarto, enquanto Anna dorme profundamente.
A história é simples, praticamente isenta de quaisquer diálogos. O silêncio das palavras, longe de ser demasiado surdo, enfadonho, cansativo, pretensioso, dá antes lugar a que os sentimentos falem por si da forma mais emotiva e apaixonante. É nessa medida que um filme se pode tornar extraordinário, na sua simplicidade e beleza com que nos conta a sua história. A sequência e o encadeamento de imagens revelam-nos uma história solitária (duas personagens sozinhas, demasiado sozinhas) e simultaneamente doce. Um retrato de amor a que não estamos habituados, porque escapa a qualquer tentativa de entendimento e, por isso, sente-se medo na presença do que nos é estranho. Um amor maior e por isso obsessivo, pela sua incompreensão.
A história arrebata-nos pela pureza dos sentimentos, pela beleza dos actos, que se fundem num misto de inocência. O personagem passa a cuidar de Anna, sem que ela o saiba. E o amor o que é senão cuidar do outro, querer cuidar do outro, nas mais simples formas sensitivas de carinho? O que é senão o amor a união da loucura e da sabedoria?
Longe de se querer revelar, este é um amor que se esconde, que se alimenta pela presença do outro, pelo respirar do outro, pela energia do outro. Um amor gratuito, mas completamente incompreensível ao julgamento dos outros.
No entanto, é também esse mistério dos sentimentos que levam Anna, ainda que irracionalmente acometida por uma consciência dos factos, a ilibar Okrasa. Ainda que atentada novamente na sua intimidade, Anna perdoa, porque não o pode deixar de fazer. Na sua compaixão ela reconhece a verdade e a inocência de Okrasa, ainda que não saiba lidar com isso.
Mas em liberdade, Okrasa acaba por descobrir que a verdadeira prisão é estar perante a incontornável privação de poder “ver” Anna.
E o desfecho é magistralmente bem conseguido na simbologia do muro. Um muro que o cega e pela segunda vez vemos Okrasa desesperado.
Um filme poético, onde o personagem é seduzido e embriagado pela energia espiritual do amor. Onde nada é mais contrário ao amor do que a ideia de apropriação. Onde o amor, ainda que nos tornando reféns é o caminho para a mais perfeita liberdade. O amor aqui retratado ganha a forma do encontro do sagrado (Anna) e do profano (Osakra). Um amor espiritual que tem medo de se degradar no contacto carnal.
Neste filme o nosso julgamento moral mede forças com a vertigem e o mistério do amor. É um filme que nos revela e nos faz reconhecer os limites da razão.
Também não é por acaso que este filme é praticamente mudo. As palavras estariam sempre a mais. Levariam à degradação e dissolução da sua própria mensagem.
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