Who watches Zack Sny
Hugo Almeida
Em qualquer adaptação de uma obra artística para outro meio, a apreciação tende a focar-se na fidelidade da adaptação à obra original (quer em forma, quer em conteúdo) e na justificação da transposição. A primeira é em última análise uma questão secundária: por razões de assinatura e relevância da obra, é (idealmente) concedida ao autor liberdade total no processo de adaptação, de forma que a sua seja uma obra autónoma, capaz de se articular a si própria. De outra forma, projectos que se cometem a adaptações cinematográficas estariam condenados a produzir somente filmes que não seriam mais do que exercícios de técnica fúteis. É por isso mesmo que justificar a transposição para outro meio é importante: perceber porque é que a obra foi adaptada e onde é que essa adaptação e o que acrescentou/alterou/removeu se coloca não só face ao trabalho original, mas também em relação a outros do mesmo meio. No caso específico das adaptações de banda desenhada para cinema (ou vice-versa), é talvez onde o confronto entre original e adaptação se possa fazer em maior igualdade de circunstâncias, dado que são ambos meios visuais cujas linguagens se desenvolveram e amadureceram em simultâneo. E apesar de cada meio ter especificidades próprias que não podem ser exploradas pelo outro (no controlo da passagem do tempo, nas formas de representação da imagem e do som, etc.) existem equivalências na linguagem de ambos os meios, não só por questões ontológicas, mas por ocasionais partilhas de experiências (se bem que, talvez por uma maior humildade do meio da banda desenhada, é um processo que mais parece unidireccional, no sentido cinema – banda desenhada); por exemplo: na apropriação da banda desenhada de estratégias narrativas originalmente concebidas para o cinema; ou na utilização mais ou menos informal de jargão técnicocinematográfico em discussões de banda desenhada. Tendo dito isto, é admissível que uma adaptação não tenha outras intenções que não o recontar da história ou a homenagem. “Watchmen” faz claramente parte dessa categoria. Tendo em conta que é só isso, sem nuances ou intenções subliminares demais, torna-se inevitável que a discussão se faça ao nível da competência do filme em ser fiel à obra original, já que na verdade não possui autonomia. Em forma, “Watchmen” é competente. O texto original mantém-se (com a omissão de várias cenas e textos que de outra forma obrigariam o realizador a conduzir um épico da duração de “Intolerance”, de Griffith). Os personagens são os mesmos e com as mesmas vozes, as cenas e trama presente também; os adereços são reproduzidos de forma mais ou menos fiel, ajustados às sensibilidades de uma audiência mainstream e à tendência histórica de adaptar o spandex do comic book ao cabedal, de forma a emprestar aos personagens um ar mais cool ou ameaçador (particularmente no caso do personagem de Nite Owl, representado por Patrick Wilson). A fotografia de cores saturadas, à qual já tinhamos sido expostos no filme anterior de Zack Snyder, 300 (e que faz lembrar outra adaptação recente – e monstruosamente falhada – dos comics: Hellboy) em detrimento de uma opção mais contida, contradiz estéticamente a premissa de desconstruir o género dos super-heróis; é mais um cliché característico das adaptações de comics. Mas isso é quase um pormenor. “Watchmen” falha essencialmente em conteúdo. É uma adaptação intelectualmente desonesta que subverte a intenção da obra original. Com o seu filme, Snyder alimenta as expectativas que Hollywood tem sobre o género dos super-heróis (expectativas essas que, de qualquer das formas, já foram contrariadas por um filme superior, O Cavaleiro das Trevas): que os comics, em particular os de super-heróis, são apenas e necessariamente a expressão acrítica de fantasias sexuais e de poder pré-adolescentes. Sobre uma narrativa de um grupo de personagens com uma dinâmica e motivações complexas (que se deve exclusivamente ao trabalho original de Alan Moore e Dave Gibbons), Watchmen O Filme sobrepõe uma colecção de caricaturas e cenas histriónicas de levantar o sobrolho, em que os actores se esforçam por evidenciar, de forma embaraçosa e frequentemente histérica, o papel social ou a disposição emocional de cada personagem. Nesse sentido, e como transposição linear de Watchmen O Comic, trai a intenção original da obra, pervertendo a subtileza e sofisticação do storytelling de Moore e Gibbons para dar à audiência uma versão digest. As poucas cenas de acção que existem no filme (Dr. Manhattan, interpretado por Billy Crudup, não conta: tem poderes ilimitados) foram corrompidas com poses juvenis e afectações que caíram em desuso nos anos 90. Os personagens, que no comic são pessoas adultas conscientes do seu próprio ridículo, e desconfortáveis nos seus uniformes de mascarados, aqui apresentam-se com acrobacias espampanantes, e ares de arrogância e orgulho no seu poder marcial. A banda sonora (Dylan, Hendrix, Simon & Garfunkel, música pop dos anos 60, suscita estranheza, dado que em muitos dos casos ilustrava cenas de uns anos 40 ou 80 ficcionais) é gratuita e descontextualizada; tanto que temi pelo momento em que “Heroes” de David Bowie – ou qualquer equivalente dos anos 60 com referências superficiais ao cenário do filme – surgisse a anunciar a resolução do conflito a par de uma vista panorâmica solene sobre a Antárctida; momento que, felizmente, nunca chegou. Estou disposto a admitir, no entanto, que é possível que exista um racional que me escapou para a escolha da banda sonora, quanto muito porque evitou, intencionalmente ou não, os clichés das caracterizações de época. Se bem que não é justo pedir que uma adaptação seja uma transliteração, pelas razões indicadas acima, é de apontar ainda a ausência do final original do comic, que dado o seu conteúdo sci-fi quase absurdo, pode ter sido vítima de uma tentativa de saneamento do conteúdo para uma audiência mais mainstream. Mas isso não é nada comparado com todos os outros problemas do filme. Há uma outra preocupação que surge, tendo em conta o filme anterior de Snyder. Neste, tal como em Watchmen, o realizador optou por tornar o vilão implicitamente homossexual. No caso de 300 era o decadente e andrógino império persa, encabeçado pelo Xerxes de Rodrigo Santoro; neste é o Adrian Veidt (Matthew Goode) de maneirismos, que é apanhado em confraternização em frente do Studio 54 com os Village People, e cuja sede da empresa de que é dono emite um grande triângulo púrpura de luz. Longe de mim querer acusar o realizador de propaganda homófoba, mas como se diz na gíria do baseball: third strike and you’re out. “Watchmen” , o filme, falha. Zack Snyder pretendia ser o apóstolo de uma nova Era de adaptações de comic books ao fazê-lo com um dos exemplos máximos da desconstrução do super-herói. Infelizmente, não percebeu que não bastava fazê-lo superficialmente; que para fazê-lo bem, como deve ser, precisava de se libertar dos clichés da representação de super-heróis em película (em detrimento da fidelidade à fonte, se necessário). É um filme que sai completamente derrotado no confronto com O Cavaleiro das Trevas. Não só isso, como Snyder comete o pecado de informar Hollywood que a grande obra de super-heróis Watchmen, afinal também sofre dos maneirismos de outros. E isso é difamação. Na cabeça de muita gente, este ainda é um género para crianças, sem capacidade de explorar metáforas complexas, ou falar de temas importantes. E na verdade fá-lo frequentemente, recorrendo à sua gramática e lógica internas tão legítimas como as de qualquer outro género, independentemente da sua irrealidade. Marcuse, no seu livro A Dimensão Estética diz o seguinte: « (...)as qualidades radicais da arte, em particular da literatura, ou seja, a sua acusação da realidade existente e da “bela aparência” da libertação baseiam-se precisamente nas dimensões em que a arte transcende a sua determinação social e se emancipa a partir do universo real do discurso e do comportamento, preservando, no entanto, a sua presença esmagadora.» É acima de tudo essa presença esmagadora que falta a Watchmen O Filme. (x-posted em http://jenny-junkie.livejournal.com/)
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