É um género
Rui Pires
E como tal, está dependente do gosto do espectador - se o espectador gosta, ou não, deste género de filme. Sendo um grande apreciador do género (que considero ser "tentativa de adaptação de uma obra, já de si extremamente ambiciosa e de uma qualidade incomparável a outras obras do seu médio, para um médio diferente que se rege por regras um pouco diferentes"), devo dizer que há coisas algo escusadas neste filme. Coisas que não compreendo, ou que posso compreender apenas se tentar pensar como o realizador, um exercício que espectador algum deveria fazer. Não compreendo, por exemplo, a brutalidade e a violência - exagerados - das cenas de acção... a não ser que imagine que talvez Snyder tivesse tentado concentrar, nesta brutalidade, todo o lado mais obscuro e violento da BD original, visto que se viu forçado a cortar cenas que poderiam fazer esse trabalho por ele (mais notavelmente, a morte de Hollis Mason). Não compreendo o porquê de cenas sexuais tão explícitas - parece que se perdeu a arte da subtileza. A não ser que imagine que Snyder tentou com elas dizer que "estes super-homens também são pessoas"... o que se perde com o facto de estes super-heróis que são pessoas terem ossos tão resistentes que quando a cabeça deles bate na parede, é a parede que cede. Não compreendo a ausência de cenas tão reveladoras como quando, durante o salvamento do prédio em chamas, os heróis (na BD) servem café. Isso sim, é o tipo de toque que mostraria a realidade inerente. No geral, o filme acaba por ser mais BD do que pretendia. Mas compreende-se - é um meio caminho entre "estes heróis são reais" e "isto vem de uma BD". Tentou-se capturar o espírito da BD, com a fotografia, as cores, e tudo o mais. É uma postura. Pode-se gostar ou não. Posto tudo isto... devo dizer que achei a adaptação *brilhante*. Mesmo os actores que a início não me convenciam, como Mathew Goode em Adrien Veidt, conseguiram capturar-me. Foi uma delícia poder ver na pele todas as personagens da BD, mesmo as que foram mais alteradas - as alterações faziam sentido no contexto do filme (e estou a pensar muito especificamente na primeira Silk Spectre). A cena mais bonita, e que parece ser a menos falada e mais menosprezada, é a cena da chegada de Osterman a Marte. Essa cena, dotada de uma fotografia fidelíssima à BD, foi o que me fez finalmente pôr de parte as minhas dúvidas e apreciar o filme. É um momento de pura beleza - que mais tarde irá contrastar com a violência extrema... mas hesito em chamá-la gratuita. Hesito. Este filme não é para todos, decerto. Não o posso recomendar - não conheço ninguém que poderá gostar dele como eu gostei. Mas é um trabalho monumental, extraordinário, e já por isso merece louvores. Os actores estão, para o que se pretende, fenomenais - Rorshach, Nite Owl e The Commedian em particular estão de parabéns. Curiosamente, pareceu-me ver em Rorsach o Clint Eastwood dos tempos modernos - tire o leitor, daqui, a interpretação que quiser. Em suma - quem não gostar dos primeiros 15, 20 minutos (incluindo o belíssimo genérico) bem pode sair - é uma boa mostra do que vem aí, e é escusado aturar 3 horas de filme que se sabe que não vai gostar. Mas quem se sentir intrigado pode ficar a assistir, e sairá recompensado. Tenho pena que o final não tenha capturado exactamente a moralidade ambígua da BD, mas não andou longe. Já é muito bom.
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