Poderoso e original
Carlos Natálio - www.c7nema.net
Transe: estado alterado de consciência; também o objectivo a ser atingido pela hipnose. Um estado de consciência onde podem ocorrer diversos eventos neuro-fisiológicos (anestesia, hipermnésia, amnésia, alucinações perceptivas, hipersugestionabilidade). Ler na quinta metragem de Teresa Villaverde um documento realista (por vezes, perto do hiper-realismo) de uma mulher em queda, arredada nas malhas da migração e prostituição europeia, é um convite ardiloso a que a própria cineasta, de certo modo, se presta. Fazê-lo equivaleria, no entanto, a não sair um milímetro de uma abordagem convencional, já vista, do cinema português. Pior: seria ficar apenas com as sobras, com o ponto de partida dramático deste "Transe" transformado assim em "corpus" residual, preconceituoso, decandentista, de mais um drama cru.<BR/><BR/>Mas qual este ponto de partida de que se fala? Sónia (Ana Moreira), um jovem russa, abandona amigos e filha para partir para a Alemanha em busca de um emprego e melhores oportunidades. Rapidamente se vê envolvida num negócio de tráfico de mulheres e prostituição em Itália. A espiral de decadência e violência em que cai parece ser uma parte escondida da Europa dos cartões postais.<BR/><BR/>Mas porque o transe também é alheamento emocional e físico, e sobretudo porque Villaverde já antes "usou" o sofrimento "in extremis" como plataforma para outras realidades dramáticas em mutação ("Os Mutantes", por exemplo), lá se vislumbra a intenção. Assim, explicados estão os planos porcos, dilacerantes, injustos, de uma Europa em total oposição com o cosmopolitismo. Um local escuro, opaco, uma "via sacra", como define a própria cineasta, para uma mulher, cada vez mais envolvida numa guerra. A guerra do ser humano contra o ser humano, da qual a esperança é uma palavra ausente.<BR/><BR/>Dessa guerra faz ainda parte uma dimensão naturalista, de uma natureza em perda ou "em desmoronamento", com as árvores que se abatem, os icebergues transformados em desertos de gelo, a neve manchada pelo sangue, sempre a partir de uma visão "endeusada", traduzida nos sucessivos planos picados sobre a realidade. Como se a câmara de Teresa Villaverde fosse o olhar em vigília, capaz de não adormecer e assim não trair, nem ser traído.<BR/><BR/>Mas o que faz de "Transe" um drama poderoso e profundamente original é o facto de tudo jogar a favor de uma dissolução. A dor de Sara, de mulher guerreira a mulher resignada, permite o esbatimento da sua identidade. ("Donde vens?"; "Qual é o teu nome?"; "Gostas desta música?"; "Queres dançar?"; repetidos uma e outra vez). E com essa dissolução, um superior aproveitamento cinematográfico, apagando a fronteira entre o realismo e um onirismo tão cruel.<BR/><BR/>Falamos por exemplo da sequência à la "Marquês de Sade", na qual Sara é mantida por um milionário fetichista como presente para o seu filho anormal. E se tudo parece a espaços ganhar uma carga de circo itinerante de horrores, com muitas cenas chocantes e virtualmente "não visionáveis", o certo é que temos sempre o espaço de indistinção, o lugar onde Teresa Vilaverde já partiu dos "sofrimentos desta Terra" e já efabula.<BR/><BR/>Por todos estes aspectos, "Transe" é um filme muito duro que traz consigo uma armadilha. Os planos muito longos, as poses das personagens, alguns diálogos tão directos serviriam, num outro filme, adivinha-se português, o carregar de fatalismos e carmas, para os quais se vai tendo cada vez menos paciência. Mas nesta espécie de rua de sentido único para o sofrimento, a faceta instrumental perde aos pontos.<BR/><BR/>Para isto muito contribui a "coisificação" de Ana Moreira, aqui drogada, vendida, algemada, violada, prostituída. Figura fetiche de Villaverde, a actriz confirma aqui ser um dos principais talentos da sua geração. Com marcado sentido de câmara e uma notável experiência, apesar dos seus 24 anos, a qual lhe permite representar em russo com a mesma convicção de sempre.<BR/><BR/>Finalmente, de Teresa Villaverde se pode dizer que continua a surpreender, fazendo com Pedro Costa uma "dupla" de talento no que toca ao cinema português contemporâneo de auto-reflexão social e respeito pelo real. Nota: 8,5/10.
Continuar a ler