As férias do rei
Carlos Natálio
Nos últimos anos têm surgido filmes medidos pelas interpretações dos seus protagonistas, ou por outra, veículos relativamente frouxos para representações virtuosas. O que levanta desde logo uma falsa questão: serão os grandes esforços interpretativos valorizados ao ponto de se alvitrarem em destruidores da dinâmica de um todo? Que assim o sejam vistos pelo olhar dos espectadores mais distraídos é uma coisa, que se erija em método de trabalho pelo qual um estúdio, uma equipa e uma história gravitem em torno de uma estrela e de uma estatueta sua cúmplice, é outra. Quer-me parecer que ainda que se esteja no campo dos "character movies" não é justificável o raciocínio do filme valer pelo seu intérprete ou pelas suas paisagens ou outro elemento qualquer. Na verdade falamos de pormenores que todos somados constroem um filme e não o inverso. E se há discussão que venha mais a propósito é esta, este ano motivada por “Last King of Scotland”, veículo de estrelato de Forrest Whitaker.<BR/> Nos últimos anos tem sido corrente pegar em personagens fortes, normalmente reais, como Truman Capote, Ray Charles, Howard Hughes ou Johnny Cash como forma de dar ao seu protagonista a oportunidade de brilhar, evocando traços reconhecíveis pelo grande público dessas figuras históricas. Tudo se parece ainda mais conjugar quando há um maneirismo, um trejeito bónus, que ajude a compor o retrato. Este ano o sucesso de tal fórmula confirma-se com a vitória de Whitaker do Óscar para melhor actor, com o seu ditador sanguinário Idi Amin. E paredes-meias, mesmo do lado feminino, a ideia reitera-se com Helen Mirren, a rainha Isabel de “The Queen” de Stephen Frears.<BR/>Não se trata aqui da exorcização de nenhuma fórmula, nem mesmo do subjugar do reconhecível talento dos nomes referidos. É somente o lado sombrio deste esquema que faz o cinema sair encolhido, como “The Last King of Scotland” parece ser disso claro exemplo. Estamos perante um argumento baseado num romance em tom verídico sobre as atrocidades do ditador do Uganda Idi Amin, responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas. Se poderia assustar tamanha carnificina em cinema mainstream, tais receios pareceram infundados ante o hábil mecanismo de entrada no universo biográfico de Amin: o recém formado médico escocês Dr. Nicholas Garrigan (James McAvoy) que decide numa viagem de assistência humanitária “barra” férias ajudar um casal de médicos numa pequena vila do país. Esse é o momento - estamos em 1971 - em que o general Amin leva a cabo um golpe de Estado e toma o poder no país. Num episódio em que Garrigan mostra sangue frio, Amin decide contratá-lo para ser seu médico pessoal e da sua família, composta por várias esposas e filhos. <BR/>E chegado aqui “The Last King of Scotland” é já uma história à deriva, onde o grande ditador se vai revelando um ser quase bipolar, oscilando entre a criança grande com o seu novo brinquedo e o sanguinário cruel. O dilema na construção de uma biografia oculta surge quando não podemos seguir a acção de Amin e estamos com o protagonista. Mas como o protagonista é um joguete no seio do novo sistema, a história vai escorrendo aos altos e baixos, bocejante, entre chamadas inesperadas do seu novo “patrão” (ou amigo?) e casos com mulheres locais. Essa dispersão diletante do veio narrativo é logo arranjinho entrevisto na “randomness” com que o médico, a início, escolhe o seu destino, o Uganda.<BR/>Desta deriva surge um punhado de personagens avulsas e, mais grave, uma noção esquemática e recorrente do que é ser um ditador no terceiro mundo e um encapsulado mental dos problemas que enfrentam os cidadãos estranhos a este tipo de regimes. Os actores são sempre eles que vão dando um cunho realista a esta “fábula abstracta do mundo”, a par com as belíssimas paisagens locais. Mesmo as imagens documentais de Amin no final não fazem esquecer a ambiência fantasiosa de toda a obra, apetecendo responder com ironia, que é tiro no pé sim senhor, quando Amin pergunta a Garrigan se pensava que vinha a África de férias. E se tivermos em conta a descontracção e o bom humor de algumas passagens com Amin, como estratégia de encobrimento dos obscuros meandros políticos e militares do seu regimes, temos, com um toque de deliberado exagero, um filme descaradamente ameno e exótico.<BR/>Uma última palavra para Kevin Macdonald que na passagem do documentário à ficção talvez tenha sido vítima de uma transição híbrida. Ficcionar com enorme convenção, material tão agudo, terá sido certamente desafio demasiado. 3/10<BR/>
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