Inspiração é isto
Nazaré
A Academia de Hollywood dá todos os anos um Óscar para o melhor filme estrangeiro. É a mesma coisa que dizer que só assim um filme de fora dos States é premiado como filme. E, ao vermos o vencedor de 2009 “O Segredo dos Seus Olhos”, bem se percebe como este paternalismo é absurdo, isto para não falar do ridículo que é os todo-poderosos de Hollywood a precisarem de proteccionismos. Não tenho dúvidas em considerar esta a melhor produção de 2009. Sem ter visto tudo, obviamente, e foi um ano aliás algo pobre por bandas dos States, mas o que importa é que, melhor que isto seria praticamente impossível. Nem vale a pena andar pelos aspectos técnicos ou artísticos, que aliás estão à altura do riquíssimo argumento: vale primeiro que tudo por uma narrativa densa mas perfeitamente inteligível, que se espraia por mais de duas horas sem que alguém pense no relógio (digo eu); onde cabem momentos de delicioso humor numa trama histórico-política que marcou violentamente a Argentina em tempos não muito recuados; onde uma paixão autêntica se deixa reprimir pelas tenebrosas circunstâncias dum assassinato, e respectiva investigação sempre votada ao desespero; onde, enfim, personagens carregadas de significado nos fazem viver as imagens de tal maneira, que não as vemos numa tela a 2 dimensões, presenciamos. Eis, pois, uma obra-prima que nos lembra ser o cinema uma arte de artes que, nas mãos de quem tem este talento, pode maravilhar e também entreter. Uma arte que exige: em quem a concebe e executa, a capacidade de dizer muita coisa, para a qual não há tempo de verbalizar, através dos pormenores; em quem a vê, a sensibilidade para traduzi-los nesse dizer. Basta ver como o público se deixa estar sentado a olhar, longos segundos, para o ecrã onde vão desenrolando os genéricos finais: é um momento colectivo de prolongamento do sabor, de reflexão, de rendição, coisa que poucos filmes chegam a merecer. E ao fim de duas horas de fita! Sim, há os olhos das personagens, as interrogações sobre os olhares, sobre a verdade que se possa vislumbrar neles. Neste filme há muitos olhares, muitas interrogações. Mas também mostra muitas prisões: não só os cárceres que são visitados (poucos), mas as prisões a que cada um está submetido: as do desejo, da bebida, do orgulho, do exílio, da vingança, do estatuto, da violência mortal. Todos conhecem a sua própria prisão, o que (n)os distingue é a maneira de procurar a libertação. E há de tudo um pouco, neste grande filme!
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