Um poema épico
Rita Almeida (http://cinerama.blogs.sapo.pt/)
1607. Três navios ingleses chegam às costas da Virgínia. Liderados pelo Capitão Newport (Christopher Plummer), um grupo de colonizadores prepara-se para se estabelecer no Novo Mundo e fundar a cidade de Jamestown. Com eles está o Capitão John Smith (um doce e sujo Colin Farrell), libertado das acusações que o traziam preso no convés do barco, que é enviado à aldeia dos nativos para trocas comerciais. Capturado pelos índios e arrastado para a casa de Powhatan (August Schellenberg), o chefe da tribo, John Smith é salvo de uma nova morte por Pocahontas (Q'Orianka Kilcher), a filha preferida do chefe. Pocahontas é uma adolescente movida pela curiosidade, que se apaixona por John Smith como se ele fosse uma representação do divino.<BR/><BR/>Por sua vez, John Smith, um explorador romântico, sonhador e idealista, apaixona-se pela ideia que ela representa: a esperança de uma nova vida, uma liberdade selvagem, e a possibilidade utópica de construir uma sociedade iluminada, baseada na justiça, na igualdade e na prosperidade.<BR/><BR/>Eu não conhecia a história da Pocahontas (suponho que facilita o facto de não me dar com crianças) e acho que isso acabou por ser uma vantagem neste caso. Aliás, o facto de o seu nome nunca ser referido ao longo do filme insinua que Malick também se quis afastar das versões existentes.<BR/><BR/>Filmar com bom gosto um romance entre um homem de 27 anos e uma rapariga de 11 (neste caso Farrell tem 30 e Kilcher 15), por muito fictício que seja, requer algum talento. E aqui "talento" é mesmo a palavra-chave, a todos os níveis.<BR/><BR/>A relação de descoberta mútua de John Smith e Pocahontas é filmada como se de um sonho se tratasse, como um encontro de espíritos, sensual e apaixonado. Malick mostra o espanto da descoberta como se o experimentasse ele mesmo, e o primeiro encontro de ambos tem mais encantamento e receio do que qualquer filme sobre invasões de extraterrestres.<BR/><BR/>Com o crescimento da colónia surge o fiável, gentil e moderado John Rolfe (Christian Bale). Como contraponto a Smith, ele constrói com Pocahontas uma relação totalmente nova, mais madura. Enquanto Smith queria conquistar e ser conquistado, Rolfe ama a pessoa que Pocahontas é. A tragédia de Smith é só tarde de mais se dar conta disso. Um e outro simbolizam a oposição entre sonho e realidade.<BR/><BR/>Na parcialidade do "nobre selvagem", que parece desconhecer a violência antes da chegada do branco, Pocahontas representa uma ponte entre as duas culturas, mas que ainda assim acaba por ter o sabor amargo da cedência ao mundo branco. Quando se entra na corte do Rei James I (um "cameo" de Jonathan Pryce), encontra-se um mundo geométrico e simétrico, onde a natureza é confinada entre linhas rectas, como Pocahontas dentro de um corpete.<BR/><BR/>Malick traduz os pensamentos das personagens em "voice over", hipnotizando-nos como ondas que, aliados à fotografia dolorosamente bela de Emmanuel Lubezki, à sublime banda sonora de James Horner e a uma montagem quase lírica nos transportam através de uma deliciosa poesia épica.<BR/><BR/>O empenho de Malick neste projecto vai mais além do tecnicamente soberbo, é uma obra emocional (o seu quarto filme em 32 anos). Com a sua singular visão, Malick usa som e imagem para criar um universo sensorial. Mais do que recriar ele tenta experimentar, e através de personagens de dimensões humanas cria uma série de perspectivas pessoais onde se misturam a verosimilhança e o espectáculo de gloriosas e inebriantes paisagens. Numa abordagem filosófica, Malick faz uma observação atenta de como os seres humanos lidam com o amor, a morte, a guerra e a natureza.<BR/><BR/>Ao seu serviço estão os magnéticos Colin Farrell e Christian Bale, fabulosos numa expressividade quase mímica. Christopher Plummer saiu claramente prejudicado da sala de montagem mas as faladas três horas de DVD prometem compensá-lo. Quanto à quase estreante Q'Orianka Kilcher (prima da cantora Jewel), só há elogios a fazer (tirando a audácia de ter nascido em 1990 numa combinação letal de pai peruano e mãe suiça). A beleza pouco convencional e o ar grave dão à sua Pocahontas a medida certa de deslumbramento e sabedoria. No seu rosto espelham-se todas as emoções e a câmara não tem outra alternativa senão segui-la.<BR/><BR/>Malick dá-se ainda ao luxo de ter grandes actores em pequeno papéis, como é o caso de Noah Taylor, John Savage, David Thewlis e Ben Chaplin. No fim deste impressionante drama sobre os primeiros passos de uma nação, sentimo-nos subjugados pela sua dimensão, cogitando sobre aquilo que foi ganho e perdido num suposto processo de civilização. Nota: 5/5.
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