Objectivo falhado
Luís Mendonça
Parece-me consensual que o talento de Tarantino, enquanto realizador-argumentista, é imenso. Foi ele o realizador de duas das obras mais marcantes da década de 90: o corrosivo "Cães Danados" e a obra-prima "Pulp Fiction". São filmes carismáticos, marcados pelos excelentes argumentos de Tarantino, onde os actores se sentem em casa("Mi Casa, Su Casa"). A narrativa, por mais complexa que seja (como é o caso da história-mosaico de "Pulp Fiction" ou "Jackie Brown"), é cativante e possui dispositivos que nos fazem prender às personagens. Pode-se dizer que o cinema de Tarantino vive de pequenos grandes momentos: o assalto ao restaurante; as palavras bíblicas de Samuel L. Jackson antes da queda do manto vermelho (de sangue); os "silêncios incómodos" e a "overdose" de Uma Thurman; a intervenção chocante de Christopher Walken... ("Pulp Fiction"); a reflexão de Tarantino em torno do titulo da música de Madonna, "Like a Virgin"; a orelha cortada por Madsen; o final ensanguentado... ("Cães Danados"). Por outro lado, Tarantino nunca escondeu a sua obsessão pelo cinema: para além de um excelente cineasta, ele é também um apaixonado da Sétima Arte. Nunca escondeu o seu fascínio pelo cinema oriental (sobretudo pelos filmes de artes marciais de Hong Kong dos anos 70), pelo génio de Sergio Leone, pela música de Morricone... É um realizador que não renega as suas influências, que mostra, em cada filme, a sua adoração pelos grandes mestres. São filmes que transpiram trabalho e perfeição, cada pedaço de imagem é seu. E foi assim que Tarantino criou um género, invocado, pela última vez, no ano de 1997 com "Jackie Brown", um filme simpático, mas que já revelava um certo declínio na sua carreira. Quentin Tarantino esteve parado durante todo este tempo e um pouco à sombra dos seus anteriores sucessos, para nos apresentar, na presente data, este "Kill Bill: Volume 1", e já completou o Volume 2. Não me parece é que tenha sido um regresso muito feliz: ele pegou nas suas maiores influências cinéfilas e fez uma aparatosa salada de frutas, mas com um sabor muito artificial. Soube a pouco também, tendo em conta a promoção que rodeou o filme: davam indicações de ser o melhor filme de acção de sempre, o filme mais violento de sempre, que iria arrebatar o júri de Cannes, que iria inovar, renovar... Enfim, uma autêntica estratégia de marketing que se concretiza num filme confuso, cheio de pontos mortos e que, para acentuar o factor lucro, foi dividido em dois. E este é um ponto importante: logo à partida, sabemos que vamos assistir a um "meio-filme" e, por isso, exigimos uma obra com frenesim, algo que nos estimule do minuto 0 até ao minuto 111. É uma exigência que fazemos por termos pago só parte de um filme. No entanto, artisticamente, não se justificava a divisão em dois. Como disse, o filme está cheio de momentos inócuos, tendo poucos dos "pequenos grandes momentos" aos que estávamos habituados no cinema de QT. Agora, ele tornou-se mais narcisista do que nunca (até a frase de promoção do filme, "O Quarto Filme de Tarantino", é paradigmático disso mesmo), "Kill Bill:Volume 1" é Tarantino a filmar-se a si próprio. É uma pena que tenha imposto, aos géneros que invoca e homenageia, os artifícios do seu cinema. A montagem desordenada de "Pulp Fiction" não funciona neste "Kill Bill: Volume 1": complica o que era simples e só mostra ansiedade em mostrar. A ansiedade é traduzida numa injecção de personagens (que vão e vêm sem deixar rasto), histórias paralelas, mistura de tempos. Muita coisa, até uma sequência Manga por lá existe (muito boa, por sinal). Mas o filme não tem consistência e, sobretudo, não entretém. Uma tentativa falhada de congregar, num mesmo espaço cinematográfico, uma série de géneros marcantes das décadas de 60 e 70. Deixa-nos com pouca vontade de ver o 2.
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