O horror, o horror...
Pedro Brás Marques
“O horror! O horror!”, expiava, em agonia, o Coronel Kurz em “O Coração das Trevas” de Joseph Conrad, personagem a quem Marlon Brando deu voz e corpo no genial “Apocalipse Now” de Coppola. Efectivamente, guerra e horror são sinónimos, dois irmãos siameses inseparáveis, filhos literalmente bastardos da Humanidade. “Fúria” é sobre isso, sobre o absurdo da guerra, da violência vermelha que parece não ter limites, mas é principalmente sobre o vírus que instala em cada combatente. Os valores eclipsam-se, a moral desaparece, o que importa é a sobrevivência em pragmático estado dual: matar ou ser morto. <p> Trata-se do regresso ao cenário do último grande conflito mundial, mas já nos seus últimos dias, algo perceptível pelos próprios soldados: ”mas porque é que eles não se rendem?”, desabafam, incrédulos. Pelos campos e pelas vilas da Alemanha, acompanhámos as missões dum tanque, “Fury”, que no seu interior acolhe e protege cinco almas. Naquele microcosmos há de tudo, desde o comandante algo louco até o novato imberbe, passando pelo homem religioso e os soldados que estão ali porque sim… Apesar das suas diferenças, funcionam os seis como um todo, porque o tanque é, também, um deles. E é através dos seus olhos que assistimos ao desenrolar dos horrores da guerra, à morte de companheiros, de inimigos, de cidadãos inocentes. A guerra é tão ou mais suja do que os campos de lama que atravessam e, à medida que o tempo passa e as missões se vão sucedendo, habituam-se ao horror. Aquele ser humano que, lá na sua terra natal, era um cidadão exemplar, enche-se de fúria e torna-se num caçador implacável, capaz das maiores atrocidades, porque perante aquele “Inferno na Terra”, tudo é relativizado. E que melhor do que estar protegido por uma mãe de aço, apropriadamente chamada de “Fúria”?... </p><p> Por aquilo que nos é servido, arriscaria dizer que David Ayer foi uma escolha perfeita para a realização. Com um realismo que evoca essa referência omnipresente que é “O Resgate do Soldado Ryan”, de Spielberg, Ayer encontra o ponto de equilíbrio entre uma violência sem fronteiras e o limite de cada homem perante o horror que se desenrola à frente dos seus olhos. Se tudo aquilo já é desesperante, então assistir ao desenrolar da história dentro dum espaço mínimo, claustrofóbico, que sublinha e amplia a sensação de asfixia, implicava indiscutível e obrigatoriamente uma mão de ferro na realização. Por isso, David Ayer saiu-se na perfeição, podendo ombrear no novel título de “o melhor realizador a filmar espaços exíguos” com Wolfgang Peterson, autor do genial “A Odisseia do Submarino 96” ou com o mestre do cinema de acção, John McTiernan, por “A Caça ao Outubro Vermelho”. </p><p> Claro que Ayer contou com um naipe de excelentes actores, capazes dum registo emocional extremamente largo, em papéis que exigiam uma passagem, em poucos segundos, do humor ao medo, passando pela raiva para explodir, lá está, na fúria incontrolável. Brad Pitt encarna o papel do comandante meio-louco, o que vem provar que o actor americano tem tendência a brilhar sempre que se aproxima de algum dos Pecados Mortais, quando não de todos… Shia Le Bouef mostra que tem muito mais a dar do que o que mostrou em “popcorn blockbusters” como os “Transformers” ou na última e desastrada entrega de Indiana Jones. E uma palavra para John Bernthal (o ’Shane’ de “The Walking Dead”) em mais um papel cheio de ambiguidade. </p><p> Uma grande e grata surpresa este “Fúria”, a provar que o filão dos filmes de guerra ainda está longe de estar expirado. Especialmente quando a guerra e os seus horrores mais não são do que pretextos para olharmos para dentro de nós e sermos capazes de perguntar: “se a natureza humana é assim, então, nas mesmas condições, será que também seria capaz de praticar aqueles horrores?”. </p>
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