Uma viagem de comboio
Raúl Reis
Encontrei Frank Goode no comboio. Quando vi este homem de postura altiva e orgulhosa, com uma certa idade e tendência para coxear, estava longe de imaginar quem ele era. Parecia-se com Robert de Niro mas era mais humano e emocional que a minha impressão do actor americano. Durante alguns minutos, Frank Goode olhou pela janela do comboio como se estivesse a rezar. De repente, voltou ao convívio do compartimento em que só estávamos os dois e explicou-me que antes de se reformar fazia cabos telefónicos. Disse-me que fez milhares – ou seriam milhões? – de quilómetros de fio. Que trabalhou sem parar. Para criar quatro filhos que agora estão muito bem na vida. Apesar de os seus filhos estarem bem, Frank Goode é um homem preocupado. Desde que a sua esposa faleceu, Frank tenta manter a casa em ordem, manter-se vivo e manter o contacto com os filhos. “E isto é o mais difícil”, explicou. Um dos seus filhos é artista plástico e vive em Nova Iorque, o outro é músico e faz parte de uma orquestra reputada. “E tenho ainda duas filhas, duas miúdas maravilhosas; que já não são tão miúdas como isso”. Apesar do que me diz, Frank ainda as vê como crianças; como todos os pais aliás. “Uma delas é proprietária de uma empresa de publicidade e a outra é bailarina em Las Vegas”. Frank Goode contou-me como foi a vida da família. Como lhe custou ultrapassar a morte da mulher. Como ela mantinha a família unida apesar da distância. “Eles passavam a vida ao telefone, os meus filhos e a minha mulher. Agora que ela não está entre nós só me saem atendedores”. Mas Frank sabe que os filhos gostam dele, só que “não têm tempo”. “Todos eles vivem para o trabalho e, a minha mais velha, tem também um miúdo. Sabe como é difícil conciliar a vida profissional e uma família...”. Frank vai visitar os seus filhos. Não os avisou. Quer fazer-lhes uma surpresa. Primeiro quer ir ver David, o artista, a Nova Iorque. Apesar de não o admitir, vê-se que David é o preferido de Frank. “Ele nunca atende o telefone”, queixa-se o senhor Goode. Só depois irá a Chicago ver Amy, a Denver ver Robert e finalmente a Las Vegas, onde está Rosie. Frank aparenta ser um homem robusto, mas observo que toma comprimidos regularmente durante o trajecto. Talvez um problema cardíaco o aflija. Tenho vontade de lhe dizer que de certeza que todos os seus filhos estão bem. Que todos gostam muito dele e que – sem dúvidas – gostariam de passar mais tempo com ele, mas que a vida é mesmo assim, feita de contradições e impossibilidades. Tenho ainda mais vontade de lhe dizer que eu, que também sou filho, tantas e tantas vezes me pergunto porque é que não vou mais frequentemente a casa dos meus pais. Por fim, lanço-me: “Sabe Frank, eu a si não me preocupava; tenho a certeza de que os seus filhos, onde quer que estejam, estão todos muito bem”. Frank não pestaneja. Olha-me nos olhos e diz: “eu sei que toda a gente tem problemas, incluindo eles, por isso não me diga que está tudo bem. E como é que eu posso ter a certeza do que quer que seja a milhares de quilómetros de distância?”. Calei-me. Frank tem razão. Desejei-lhe boa viagem e saí na estação seguinte. Deixei-o a falar com uma velhota que não parava de fazer palavras cruzadas e nos questionava incessantemente com perguntas: “... palavra de três letras, a começar por “p”: homem com progenitura... porque é que eles usam estas palavras caras que ninguém percebe?”.
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