Todos iguais, mas...
Pedro Brás Marques
Os problemas raciais são um dos graves vírus que afectam a saúde dos EUA. E tudo se complica quando esta discriminação tem como protagonistas aqueles que deveriam ser os primeiros a combatê-la: polícias e juízes, os homens que juraram fazer aplicar e executar a Lei. <br />Em 1967, Detroit estava ainda longe da crise que a transformou na cidade decadente que é hoje. Durante o Verão desse ano, uma rusga policial a um clube ilegal descamba em confrontos que rapidamente saem para a rua, ganham dimensão com a chegada de mais força policial e do Exército, transformando-se num motim com milhares de pessoas em protesto, entretidas em pilhagens e todo o tipo de crimes, desde homicídios a incêndios. Durante uns dias, Detroit transformou-se literalmente num inferno, morrendo mais de vinte pessoas, incluindo polícias, militares e bombeiros, além de centenas de feridos. O filme retrata os acontecimentos misturando imagens reais com ficcionais até se centrar nos polícias brancos que acabaram por matar erradamente um dos protestantes negros que estava no Hotel Algiers. Tentam encobrir o crime com a concordância forçada dos amigos da vítima, mas o plano acaba mal, sendo todos detidos. Muito embora houvesse brancos e negros de ambos os lados da contenda, a verdade é que as forças policias eram maioritariamente brancas e não tiveram qualquer contemplação no uso absolutamente brutal de força. Tudo acaba mais ou menos protegido, com absolvições indignas e indemnizações vergonhosas… Ou seja, há uma América branca e outra negra. <br />É óbvio que durante a visualização de “Detroit”, vêm à memória os recentes episódios de polícias brancos que dispararam e mataram negros de forma leviana, acabando absolvidos. Na verdade, quem estiver minimamente atento à realidade americana, sabe que são tragédias recorrentes. Katherine Bigelow claramente procurou demonstrar que não só o problema é antigo como atravessa a sociedade americana naquilo que ela mais preza, os valores dos “Founding Fathers”, em que a Fraternidade e a Igualdade são completamente espezinhadas. <br />A realizadora manteve o seu registo de grandes planos com imagens rápidas e nem sempre estabilizadas, quase simulando um “directo” televisivo, precisamente para fazer o espectador sentir-se integrado, como que “dentro” do filme e assim percepcionar melhor a tensão, por um lado, e a injustiça, por outro, de tudo o que aconteceu naquele Verão de 1967 e que, na verdade, ainda não acabou… E efectivamente, o efeito é brilhantemente conseguido, em especial nos espaços pequenos e fechados, onde a tensão sobe ao quase insuportável, assim confirmando, se ainda fosse necessário, Bigelow como uma excepcional realizadora de filmes de acção. Mas não funciona. E não funciona por uma razão comum aos filmes do género: são panfletários e acabam por ser impositivos. Em vez de deixar ao espectador a liberdade de formar opinião, optam por lhe dar uma injecção. Mais do que contar uma história, Bigelow quer marcar uma posição, num evidente alerta para as ideias de quem hoje habita na Casa Branca... Isso é claro na forma como usa as personagens, cujos propósitos de vida narrativa parecem ser unicamente o de servirem de veículo para a denúncia do mal… Percebe-se que, dentro dessa lógica narrativa a fase de julgamento fosse necessária, até para provar que também o sistema judicial estava inquinado, mas acaba por funcionar como um anti-clímax perante a tensão de tudo o que se passara antes. Uma história com cinquenta anos mas, incrivelmente, ainda actual.
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