Ambiguidade, ambiguidade, ambiguidade
Nazaré
Truman Capote crê ter inventado, com "In Cold Blood", o romance documental (no inglês original: "nonfictional novel"). E todo ele — o escritor — é "non": através do filme "Capote" se vê o protagonista em permanente negação, exímio praticante duma "mentira sincera" que não só lhe permite ser coqueluche no rarefeito nimbo da vanguarda literária nova-iorquina, mas também insinuar-se numa remota comunidade rural do Kansas, assim como na intimidade de um marginal esquizofrénico. O filme "Capote" mostra-nos insistentemente a teia de ambiguidades onde o protagonista vivia enredado para sobreviver. Típico produto de um mundo decadente que se alimenta da luz dos flashes fotográficos e outras formas de aplauso, e que não se atreve a sair para outros mundos, Truman Capote pagou alto preço por ter-se atrevido, e este filme mostra-o.<BR/><BR/>E é aqui, ao que parece muito mais do que na prosa "sincera" de "In Cold Blood", que se dá uma dimensão humana aos condenados, deixando-nos espreitar para lá das aparências para assim, mais uma vez, podermos lembrar que a pena de morte, consagrada na Lei, torna assassinos todos os que se julgam do lado do Bem. Especialmente quando transvestem a vingança, ou o final de um livro ambicioso, de justiça.<BR/><BR/>Ironicamente, o filme "Capote" é ele próprio um romance documental dos bastidores da escrita de "In Cold Blood". Como que "making of" a servir de pretexto para um estudo penetrante (nada apologético) da personalidade do escritor vivendo o momento culminante da sua vida, cinco anos e cinco meses cara a cara com o seu próprio destino, vividos para além da realidade. Esta vivência é o aspecto em comum entre todos os grandes criadores, no meio de todas as diferenças que os distinguem: Leonardo e a "Gioconda", Nijinskii e a "Sagração da Primavera", Fernando Pessoa e o díptico "O guardador de rebanhos"/"Ode triunfal", Chaplin e "O garoto de Charlot", Beethoven e a sinfonia "Heróica", Darwin e a viagem do Beagle...<BR/><BR/>Ressalve-se que, antes de Truman Capote ter inventado o romance documental, o mesmo já existia: pelo menos Hitchcock o tinha feito em cinema ("The Wrong Man" de 1956, com Henry Fonda, Vera Miles e Anthony Quayle), com muito menos alarido e sem ter queimado as asas no processo.<BR/><BR/>Os mais vivos aplausos para o transfigurado Philip Seymour Hoffman no protagonista, não esquecendo Clifton Collins Jr. no seu "alter-ego", o argumento (adaptado) e a realização.
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