Má sorte no sexo ou porno acidental
Fernando Oliveira
“Má sorte no sexo ou porno acidental”, o primeiro filme que vi de Radu Jude, é um olhar inquietante sobre o mal-estar que define as sociedades actuais, a hipocrisia instalada, o politicamente correcto tornado numa sinistra forma de censura, o parecer acima do ser. É um filme que escolhe a confrontação com o espectador para melhor estilhaçar o zeitgeist imposto pelas redes sociais e o sensacionalismo noticioso actual. E que confronta, ao mesmo tempo, a intolerância, o racismo, a homofobia, o sexismo, e o nacionalismo mais perverso que daí emerge. É, portanto, uma sátira, onde o realizador ridiculariza, entre o cómico e o azedo, os comportamentos actuais da sociedade romena (que são quase os mesmos que os das outras). <br />O filme divide-se num prólogo, três partes, e três finais; e Jude tem a ousadia de em cada um deles nos mostrar registos completamente diferentes, uma narrativa quase caótica, subversiva, que agarra na moral e nos bons costumes, dá-lhe duas voltas no ar, e mostra-nos a sua crueldade intrínseca. <br />O prólogo é porno caseiro, desenfreado, um casal a fazer sexo, mostrado de forma explicita. Este prólogo que nos será explicado aos poucos: a mulher, Emi (Katia Pascariu) é professora de literatura num colégio privado elitista, ela e o marido colocaram o vídeo num site pornográfico, mas daí extravasou para o domínio público. <br />A primeira parte do filme mostra a protagonista a deambular por Bucareste, mas embora a câmara de Jude a siga não se prende a ela, desvia o olhar para os cartazes publicitários, para as montras, para a confusão das ruas, para as discussões e conversas, escuta e vê a vida numa cidade e depois volta a Emi. Esta primeira parte quase parece ser um documentário como uma personagem de ficção dentro, mais interessante ainda porque foi filmado no Verão de 2020, em plena pandemia, o que o torna um documento também cómico sobre as novas regras sociais. <br />A segunda parte é um intervalo na narrativa, é um dicionário de “anedotas, sinais e milagres” e é isso mesmo, uma série de palavras definidas por pequenas frases, apontamentos históricos, vídeos que o realizador provavelmente foi tirar à internet. “Natal” ou “cona” entre muitas outras são definidas com um humor irónico e cruel, é um lamento esta segunda parte do filme. <br />A terceira parte volta à ficção, e ao problema de Emi. Em estilo “sitcom”, mesmo em plena pandemia, há uma reunião no colégio com os pais dos alunos. Estes incluem todos os estereótipos mais ridículos da sociedade romena e, enquanto Emi defende a sua privacidade e a sua competência profissional, o pior do ser humano vem ao de cima na argumentação daqueles pais: as teorias da conspiração, a incapacidade de ouvir o outro, a defesa do indefensável, o racismo contra os judeus e o ciganos, o revisionismo histórico, o machismo: um retrato da estupidez humana. <br />E os três finais: sem adiantar muito, o último mete a “Mulher Maravilha” (sim, a personagem da DC Comics) e dildos gigantes. É ver para crer. <br />Um olhar absolutamente livre e corajoso, amoral e incorrecto, sobre o pântano moral e imoral que é o nosso presente social. Um filme muito inteligente e perturbante. <br />(em "oceuoinfernoeodesejo.blogspot.pt")
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