Uma sonata para um homem bom
rtp | http://tretaseletras.blogspot.com/
Já há muito tempo que não via um filme que me agradasse tanto. Fora ao cinema a medo. O Óscar para melhor filme estrangeiro fazia-me temer o pior, depois de ter visto "The Departed" a arrebatar o prémio da Academia para melhor filme. Uma sms apologética do filme e um punhado de críticas abonatórias venceram os meus medos. E ainda bem que tal aconteceu. "Das Leben der Anderen" destila humanismo.<BR/>A história começa em 1984. O muro, ainda, divide as duas Alemanhas, abafando aqueles que vivem na sociedade orweliana da parte dita democrática. Uma rede de informações é tecida por muitos (tantos!) cidadãos pacatos (estranhamente "normais") que se dedicam, submissa e acomodadamente, a ver, ouvir, e relatar todos os passos de vizinhos e companheiros de trabalho. A ler a vida dos outros, à procura de passagens dissonantes com a narrativa que o regime silenciosamente impunha, num texto ditado e que todos deviam repetir.<BR/>O Capitão Gerd Wiesler (Ulrich Muhe) destaca-se da mancha anónima de informadores. Convicto elemento Stasi, cumpre escrupulosamente as suas funções. Fareja os recantos das vidas daqueles que lhe parecem suspeitos – e poucos são os que escapam ao olfacto apurado deste profissional treinado. Como académico reputado ensina os seus métodos de interrogatório aos novatos que vão sendo amestrados. Recebe, por isso, com agrado a incumbência de seguir a vida de um dramaturgo famoso, George Dreyman (Sebastian Koch) que vive em harmonia, pelo menos aparente, com o poder instituído. Não são intuitos interesseiros de progressão nos quadros do partido que o acicatam – como acontece com o oficial de alta patente Anton Grubitz (Ulrich Tukur), seu colega de escola - nem outros vis desejos mundanos – como os apetites carnais do Ministro da Cultura Bruno Hempf pela actriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), companheira de Dreyman. Move-o, apenas, a superior missão de salvaguarda do regime que aprova.<BR/>Wiesler segue a vida de Dreyman. Assiste ao seu desenrolar, sentado a uma secretária com auscultadores atentos e écrans vigilantes. Perscruta-a até aos mais ínfimos pormenores. Vive-a, à míngua de uma que lhe pertença. A vida de Dreynman inunda a sua. Ocupa o vazio que o habita. É ela que lhe oferece as suas únicas emoções. Só tem a vida de Dreynmar e de Sieland. A vida dos outros. Agarra-se, então, a ela. Procura remendá-la. Para isso trai o regime, esconde-lhe informação. Deixa que Dreyman – sem que este suspeite da vigilância a que é sujeito e da conivência com que é brindado - publique um artigo altamente comprometedor no ocidental "Der Spiegel". Enquanto o texto é preparado em segredo na casa do escritor, Wiesler forja, para os relatos oficiais, uma "falsa" peça que o dramaturgo estaria a escrever para comemorar os 40 anos da RDA. Cria uma trama ficcional em que Dreyman desempenha um papel sem o saber. <BR/>O que o leva a manipular o curso de acontecimentos? Um coração que entretanto começara a bater? Um imperativo ético que, entretanto, o conquistara? A soberba interpretação de Ulrich Muhe, que poupa em artificios e exageros, deixa espaço para a suposição. A derrocada do pétreo e insensível stasi dá-se simbolicamente aquando da sua conversa com a criança no elevador. Aí transige com a sua férrea actividade persecutória. Nasce um novo Wiesler. No entanto, a pele permanece a mesma. Sentimo-lo, percebemo-lo, porque Ulrich Muhe no-lo dá a conhecer quase imperceptivelmente. Não precisa de palavras, esgares ou olhares mais impressivos. À transparência, lemos-lhe a alma renovada.<BR/>Com o incumprimento do dever que o vinculava face ao regime, liberta-se. Reganha a sua vida, recupera a sua humanidade. Conquista o seu direito à "Sonata para um homem bom".<BR/>E o filme podia ser só isto. Mas é muito mais. Deixa-nos muitos pontos para reflectir. Dele podemos tirar muitas lições para a sociedade controladora em que vivemos. Ensina-nos a estar de atalaia para novas formas de ditadura informacional que se vão instalando, a pouco e pouco.<BR/>O filme tem, também, o mérito de não cometer o pecado que podia ser capital - o encontro sentimentalão entre o Stasi arrependido e o vigiado agradecido. Salva-se in extremis. O relato da história passada, escrita pelo punho de Dreynman, em livro publicado já após a queda do Muro de Berlim, serve os intuitos apaziguadores. Basta-nos que, na última cena do filme, Wiesler - aquele que um dia fora o agente HGW XX/7 - com um leve sorriso no rosto, após comprar o livro, o reclame do vendedor despido de embrulhos supérfluos "por ser para ele" a sonata nele contida.
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