A Persistência da Memória
Pedro Brás Marques
Clara, uma viúva e jornalista aposentada, vive sozinha no único apartamento habitado em todo o prédio. Ela sempre ali residiu mas, agora, uma construtora quer demolir o imóvel para erguer um moderno edifício de apartamentos. A localização, na primeira linha de praia da cidade de Recife, é extraordinária e altamente apetecível para o negócio imobiliário, mas Clara é teimosa e recusa sair. A construtora também não se fica e vai tentar, por todas as formas, fazê-la sair de lá… <br />Em "Aquarius", Sónia Braga dá vida a uma Clara que ainda ouve música em vinil, guarda fotos antigas, cuida da casa porque foi ali que os filhos nasceram e cresceram. É um monumento não só à determinação e à força de vontade como à alegria de viver e de ser feliz. Ainda jovem, teve um cancro da mama que a obrigou a uma mastectomia. Resistiu e soube viver a vida. Perdeu o companheiro e pai dos três filhos, mas nem isso lhe retirou o ânimo. Por isso, por ser alguém que já passou por muito, não será uma mera empresa de construção, por muito poderosa que seja, a conseguir dobrá-la. <br />É óbvio que a luta de Clara é a do eterno combate entre o ser humano e a passagem do tempo. Ela é uma memória personificada. Simboliza tudo o que já passou, o acumular de sentimentos e de momentos de toda uma vida. É avessa à mudança porque, se perder esse seu passado, arrisca-se a não ser nada. A música é o grande portal temporal para que Clara regresse a décadas passadas. É em LPs de vinil que habitam cantores e bandas de outros tempos, ligação umbilical a muitos episódios marcantes da sua vida. A certa altura, alguém pergunta porque é que “dantes” as pessoas tiravam fotos junto aos seus carros. E o irmão de Clara responde que o carro era como se fosse família e não o mero objecto que hoje conhecemos. De facto, com o passar do tempo, é a própria mundividência que se vai renovando, mas Clara luta contra ele, contra essa mudança personificada na construtora que quer impor modernidade mas precisa de espaço pelo que para uma entrar, a outra terá de sair. Clara adora a família mas flirta com homens, jovens ou maduros, pratica ginástica oriental e tem uma alimentação cuidada mas toma um “porre” de vez em quando. Ela é um qualquer de nós, o que dá uma dimensão universal a “Aquarius” . <br />Todos nos lembrámos de Sónia Braga no papel de «Gabriela» na telenovela homónima baseada na obra de Jorge Amado. Também por isso, a escolha da actriz foi perfeita para interpretar Clara. Porque ela faz igualmente parte da memória de várias gerações e isso ajuda a sublinhar a luta da ex-jornalista pela preservação da sua memória. A actriz está maravilhosa. Com uma energia quase de adolescente, percorre o filme “cheia de graça” e “num doce balanço”, como escreveu Vinicius de Moraes. Com uma serenidade por vezes desconcertante, só perde mesmo a calma quando a irritam para lá do tolerável. E o belo rosto de Sónia Braga leva-nos suavemente até ao seu passado, às suas alegrias e tristezas. <br />Kleber Mendonça Filho continua a registar o pulsar da “sua” Recife, seja em apontamento ficcional ou documental. Depois de “Recife Frio” e “O Som ao Redor”, chega este Aquarius - Filme. Apesar disso, o realizador não se perde em imagens turísticas, antes apostando em criar tensão através de espaços fechados como o apartamento de Clara e o recurso insistente a grandes planos, amplificando a luta interior das personagens. Conseguiu, desta forma, não só um grande filme, como comprovar que não são precisos efeitos especiais caríssimos ou delírios argumentativos de realizadores egocêntricos para se fazer excelente cinema mas antes uma boa história e um punhado de actores competentes.
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