Sonhos feitos à mão
Rita Almeida (http://cinerama.blogs.sapo.pt/)
Após a morte do pai, Stéphane Miroux (Gael García Bernal) regressa a Paris, onde vive a sua mãe, Christine (Miou-Miou), que lhe garante um trabalho como ilustrador de calendários. O plano de Stéphane é publicar o seu calendário de "Desastrologia", salientando, em cada mês, um desastre de grandes proporções que ocorreu nalgum ponto do globo. Mas o seu trabalho no escritório acaba por se revelar tremendamente monótono, o que apenas serve para exacerbar a propensão natural de Stéphane para se refugiar num mundo onírico. Quando Stéphane conhece a sua nova vizinha, Stephanie (Charlotte Gainsbourg, "21 Grams"), e se apaixona, a sua tentativa de aproximar estes dois mundos e manter-se em equilíbrio toma novas proporções.<BR/><BR/>A dificuldade de Stéphane separar os seus sonhos da realidade prende-se com a sua incapacidade de lidar com um mundo onde as pessoas erram e se magoam, ou seja, um mundo adulto. À semelhança da personagem de Jim Carrey em "Eternal Sunshine of the Spotless Mind", também Stéphane prefere negar a realidade. Sem aviso, Michel Gondry leva-nos para dentro da mente de Stéphane, materializada num estúdio em cartão de onde é emitida a StéphaneTV. E tal como Stéphane, também nós tentamos discernir o que é real e o que é sonho. Ou serão os sonhos uma forma de realidade?<BR/><BR/>Apesar de não estar feliz com o seu trabalho, aquele parece ser o lugar perfeito para Stéphane. Os colegas Guy (um fabuloso Alain Chabat, "Le Gôut des Autres"), Martine (Aurélia Petit) e Serge (Sacha Bourdo) comportam-se como autênticas crianças e ampliam os delírios de Stéphane, como se se tratassem, eles próprios, de diferentes facetas do seu sub-consciente. O mesmo acontecendo com o brando patrão M. Pouchet (Pierre Vaneck). Um dos momentos mais deliciosos de "Science of Sleep" é quando Stéphane e os colegas, vestidos de gatos, interpretam a música "If You Rescue Me", uma versão da música "After Hours" dos Velvet Underground, cuja letra feita expressamente para este filme fala de um gato abandonado.<BR/><BR/>De uma forma extremamente imaginativa, por vezes absurda, por vezes bizarra, Michel Gondry constrói um universo de sonhos com o mínimo de recurso a efeitos especiais. O seu mundo é feito de texturas: água de celofane e nuvens de algodão. Ao som de "Instinct Blues" de White Stripes, a cidade de Stéphane é reconstruída em cartão, para uma pista de ski bastou juntar tecido e fios de várias cores, e uma máquina de viajar um segundo no tempo é utilizada por Stéphane para dar dois primeiros beijos a Stephanie, um no futuro, e outro – o mesmo – no presente.<BR/><BR/>O campo das interpretações é dominado por um Gael García Bernal ímpar ("Diarios de Motocicleta", "La Mala Educación"). Mesmo no registo mais disparatado é totalmente credível, porque percebemos que Stéphane tenta, verdadeiramente, superar as suas inseguranças e, entre o desastre e o charme, ele é apenas um rapaz a tentar fazer-se um homem.<BR/><BR/>Sem explicações ou concessões, Gondry utiliza a fantasia para falar da realidade do amor. Ele consegue representar visualmente a confusão, o delírio e a magia de estar apaixonado, de querer viver a realidade mas não conseguir dominar a imaginação.<BR/><BR/>Mas apesar de se passar no inconsciente, este é um filme muito pouco sexual. Exceptuando umas quantas anedotas porcas, as referências a sexo não passam de clichés reunidos no quotidiano. Por isso a ligação entre Stéphane e Stephanie pode facilmente ser extrapolada para uma dualidade entre o feminino e o masculino, na qual a semelhança do nome joga um importante papel.<BR/><BR/>"Science of Sleep" é um portento de imaginação, um banquete visual, divertido e melancólico e, tal como os sonhos, cheio de símbolos, para digerir com a devida atenção. Mas os sonhos não são apenas um processo de fuga, deles pode também depender a sanidade. Os de Gondry são feitos à mão, com tesoura, cola e muito amor. Nota: 9/10.
Continuar a ler