Terra de ninguém
Raúl Reis
Os seres normais como nós não conseguem perceber como é que uma pessoa famosa, rica e com uma vida cheia de coisas boas pode ser infeliz. É difícil compreender porque é que Kurt Cobain, Marylin Monroe ou Heath Ledger se suicidaram. Como é que a vida de uma estrela pode ser triste? Sofia Coppola é filha de um dos maiores realizadores do século XX. Ainda bebé, foi actriz nos filmes do seu pai e, antes dos 30 anos, realizou a sua primeira longa-metragem, “The Virgin Suicides”. Sofia Coppola sabe como vivem as vedetas de Hollywood e, certamente, tem um ideia clara dos males que as afligem. O novo trabalho da realizadora conquistou o galardão máximo do festival de cinema de Veneza e mereceu críticas díspares. Têm razão aqueles que acusam a americana de repetir a receita de “Lost in Translation”, mas como não aplaudir um passo em frente, um aperfeiçoamento do prato que nos servem? “Lost in Translation” marcou o início a cinematografia do século XXI, mostrando como é possível estar-se completamente só rodeado de pessoas numa aldeia global cada vez mais cosmopolita. O vazio que preenche a vida de Bob Harris (Bill Murray) em “Lost in Translation” é semelhante à depressão em que vive Johnny Marco (Stephen Dorff) em “Somewhere”.Retirado no mítico hotel de Los Angeles, Château Marmont, Johnny Marco está em convalescença. Os dias sucedem-se e Johnny come e dorme, tem relações sexuais com a primeira que encontra e com as “escort-girls” que contrata, faz algumas aparições públicas obrigatórias e... aborrece-se. Johnny é um conhecido actor que procura sentir prazer mas não consegue. Veja na Wikipédia a definição de anedonia, um estado psíquico que pode acontecer a pessoas que vivem em depressão.Johnny Marco anda em círculos. Vemo-lo simbolicamente acelerar ao volante do seu Ferrari, numa estrada que parece não ter fim, um trajecto que se repete vezes sem conta. Nem sequer uma viagem a Itália vai conseguir mudar o estado de espírito do actor. A única influência positiva vem da sua filha, Cleo (Elle Fanning) que, apesar de ter dez anos, decide tomar conta do pai e obrigá-lo, literalmente, a comer uma refeição quente de vez em quando.Sofia Coppola não vê “Somewhere” como um filme cujo tema é exclusivamente a vida dos actores de Hollywood. Para a realizadora, há assuntos universais em “somewhere” tais como as relações entre pais e filhos e a solidão. O que torna esta obra especial é o facto de se tratar de uma espécie de continuação de “Lost in Translation”. Johnny Marco podia muito bem ser Bob Harris, regressado do Japão e instalado no mesmo hotel porque as relações com a sua mulher não corriam bem.“Somewhere” também podia ter-se chamado “Nothing” porque a personagem principal vive um vazio e sente-se insignificante. No filme há muita gente que parece não sentir nada. Gente que circula de um sítio para outro e que desempenha um papel na vida. Sofia Coppola tem razão: mesmo esta mensagem é universal pois todos representamos papéis, muitos e diversos: pais, filhos, empregados, clientes, professores, alunos... Em “Lost in Translation”, Bob Harris sentia-se perdido e só em Tóquio, tal como Johnny Marco está abandonado aos seus relações públicas em Hollywood e depois em Itália. Sofia Coppola mostra tudo isto como ninguém e para “Somewhere” apostou num trabalho ainda mais nihilista. Um filme em que quase nada acontece, mas do qual não ousamos desviar o olhar. Sofia Coppola fez um filme aborrecido, sobre o aborrecimento mas ninguém se aborrece a vê-lo. Talvez porque a realizadora faça parte deste mundo desde a nascença. Talvez porque seja uma excelente realizadora e argumentista. Talvez por já ter vivido este e neste vazio.
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