Da abjecção
joãocarpinteiro
Talvez haja resquícios de um contágio binário em alguns pareceres cinéfilos; somos herdeiros [homens do século XXI] de uma trama económica que reinventou medidas e reprime contingências, inclusive no campo artístico. As facções que protelam o direito à subjectividade bifurcam (com imperativa lógica) o caminho binário trilhado. No entanto, o que antes era “surreal” e “esquinado”, ou uma facção anti-lógica binária com face própria (estética surrealista), tornou-se apenas o reverso da moeda, a cara oposta à coroa economicista: isto é dizer que, da mescla democrática formada por direitos de expressão e direito ao erro [todo o objecto sem propósitos lucrativos] nasceu a nova facção – a do direito à implementação científica da subjectividade. É a ciência do eufemismo, que ao invés de dizer, por uma, outra coisa, diz por outra coisa, coisa nenhuma – esquema niilista da cultura vigente. Chamemos-lhe a ciência do adjectivo [37, se contei bem]; gramaticalmente é formidável, diga-se, e digno de realce – há aqui um jogo complexo entre dois elementos de criação semântica e sintáctica –, pois do uso aleatório do adjectivo nasce o eufemismo, ou melhor, transforma-se o nada (aquilo que há a dizer inicialmente) noutro nada (resultado da adjectivação); ou seja, o adjectivo funciona enquanto consumação da ciência da subjectividade, ou o seu devir-ciência, que dá ao nada uma forma de nada visível – as matérias criadas são de particular eloquência quando se usa dupla adjectivação ou se reforça, habitualmente no final do texto (quando o eufemismo começa a perder força, desgastado pela transformação operada ao nada), o desgastado adjectivo com um advérbio – ah, que objectos se roubam ao nada quando têm este suporte! Passar-me-ia despercebida – ou catalogada enquanto opinião controversa – esta tentativa de “acordar” estados inorgânicos, não fosse cruzar-se com eufemismos de outra estirpe, no caso corpórea [neste caso, a adjectivação reduz a nada objectos inicialmente corpóreos – num processo ainda mais elaborado]: são os casos citados de James Gray ou David Lynch. Quantas distopias adolescentes se não desenvolveram? Quantos Donnie Darko's não tiveram progressão, permanecendo para sempre ligados à trucagem precoce, sem se soltarem das amarras criadas por esse objecto pioneiro? Quantos não chegaram ao lugar onde o travelling pode ou não ser uma questão moral? É que desta Caixa só saem travelling's frontais, em busca de tensões [inexistentes], esperançoso(s) de conseguir mascarar o carácter oco da narrativa, da composição de personagens, da profundidade estética... Uma necessidade do homem civilizacional em criar símbolos que exprimam a nossa coerência – eis o fenómeno Richard Kelly. Pois é um abismo que separa DONNIE DARKO deste PRESENTE DE MORTE. O ponto de partida, ou melhor, a essência, é a mesma num e noutro filme. SOUTHLAND TALES (porque, hoje em dia, já não há KAPO's, ou filmes que nunca ninguém tenha visto) pareceu-me uma investida de Kelly pelo que devia ser o seu caminho – uma abordagem superficial à América superficial, repleta de figuras a quem a face rouba a profundidade; parecia-me uma muito sólida alusão aos meandros da pop art. Mas THE BOX é um desastre a todos os níveis. Não há inconsistência em ter de um (DONNIE DARKO) e de outro (estoutro) visões diferentes. Mas, infelizmente, como nos debates políticos, a necessidade de coerência do discurso rouba à acuidade interpretativa o que lhe pertence. O nosso ego é excessivamente ameaçado pela possibilidade de não-conformidade entre uma opinião actual e outra anterior. A verdade é que, após o nascimento, o crescimento de Kelly não aconteceu. Os filmes nunca adquiriram profundidade, mantendo-se tudo muito aquém das potencialidades visuais do Cinema; o casting (talvez único aspecto a quem se deva apontar responsabilidades noutras direcções, que não a de Kelly) é tenebroso: Peter Mardsen e Cameron Diaz são medíocres, Langella tipificado. O que antes “distraía”, pela sobreposição de histórias e direcções narrativas, agora entedia, pelo não governo/ mau tratamento de uma história já de si fraca.Como dizia antes, a análise a que me refiro passaria incólume, não fosse a comparação com, quiçá, os dois nomes mais importantes do cinema americano das décadas 90 e da primeira deste século. A Lynch não farei referência; Gray é tão só o mais habilidoso tradutor de uma linguagem narrativa (de partida) para uma linguagem visual (de chegada). TWO LOVERS é, provavelmente, o melhor filme americano desta primeira década, filmado (a câmara, a câmara!) com harmonia musical (a lembrar CASSAVETES?), interpretado na perfeição. Faz sentido “romper” com a acuidade estética para enfatizar premissas narrativas? O “romantismo terminal” de Gray provém dos travellings luminosos de Nova Iorque, das subjectivas da vista da cidade, da música de Henry Mancini! Não tem sequer um milímetro de contacto com o romantismo decrépito da oferta da prótese... A comparação de duas coisas tão distintas é de mau tom. E é de mau tom por ignorar a essência do cinema – a sua componente visual –, por desvelar a falta de acuidade visual patente nesta observação. Não é fácil opinar negativamente todas as semanas; também não é bonita a criação moderna de um lugar de intangibilidade pela não admoestração de objectos medíocres – o devir-ciência do “não é assim tão mau”, tão concordante com a essência do homem civilizacional português –, mas esta análise roça a incompreensão! Não se pode transformar objecto de tão pouco valor noutra coisa que a não é, referindo-o a par de obras de nível estético ímpar.
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