Dilemas da carne
Carlos Natálio
“A fome por uma alternativa”- é assim que Sarah Pierce (Kate Winslet) vê a mentalidade de uma mulher que se recusa a aceitar uma vida de infelicidade. E quem é esta mulher? É a feminista Madame Bovary. Em que ocasião? Quando Sarah, jovem mãe e licenciada em literatura inglesa, discutem o famoso romance de Flaubert, na sua primeira reunião do “clube do livro” das donas de casa. E o que faz o já extenso cinema de Todd Field, (apesar desta ser a sua segunda longa, depois da obra prima que era indiscutivelmente “In The Bedroom”) senão oferecer precisamente essa “saciedade” para uma fome de alternativas no seio do cinema moderno? Uma alternativa pela via do drama adulto, em ferida aberta, pelo rigor de um olhar nocivo às convenções, mas sobretudo por um desconforto enraizado nos pormenores de um quotidiano, brutal e opressivo, na sua banalidade. Fome ainda a palavra certa para descrever estes pecados íntimos. Porque é neste ambiente de vizinhança de uma classe média urbana americana, como em “Safe” de Todd Haynes”, ou como em “American Beauty” de Sam Mendes, que se espartilham dilemas do corpo. Todos estes adultos têm de lutar contra a carne, amordaçar a pele nervosa que os impele: para uma pedofilia degenerante (o excepcional Jackie Earle Haley); para um adultério como bálsamo para a solidão (Kate Winslet e Patrick Wilson) ou para uma nova dependência sexual (Gregg Edelman). Isto sem esquecer uma documentarista sem atenção ao seu real (Jennifer Connolly).<BR/><BR/>Se a estratégia de entrelaçamento narrativo não surpreende (“Crash”, Syriana”, “Bobby”, “Short Cuts” só para referir alguns), espanta sim que a obra de Todd Haynes prescinda desse gancho melodramático, tão em queda, centrando-se antes na secura das decisões destes seres humanos, na crueza das interpretações ou no tom literário da voz off de Will Lyman, de uma serenidade falsamente apaziguadora. É tendo sempre o desastre iminente, em surdina (a importância dos comboios), quiçá porque paredes-meias com o postiço das relações sociais (a fidelidade, a falsa moral, a demencial perseguição do pecado), que Haynes consegue uma profundidade lenta, quase perversa na agonia de cada decisão. Neste mundo, a normalidade e a monstruosidade só à primeira vista se digladiam e as crianças são todos os que têm de agir. As de facto têm a vida facilitada porque alguém lhes põe cobro aos seus impulsos. Como na cena em que os pais na piscina não permitem que os filhos comam mais doces. Ao invés, as crianças, as de corpo adulto, têm de refrear impulsos, numa luta só, contra o pomposo sistema das relações humanas.<BR/><BR/>Socialmente desperto, o argumento de Tom Perrota (a autor do romance no qual se baseia) e de Haynes está na corrida para melhor guião adaptado. Kate Winslet, esposa e mãe desajeitada, está também nomeada para melhor actriz, assim como Jackie Haley no escalão secundário. Mesmo a possibilidade de vencer todas as três categorias, o que é duvidoso, deixa uma certa sensação de constrangimento pelo facto dos óscares, todos os anos passarem, sistematicamente ao lado dos melhores. Ainda para mais tratando-se de um objecto tão da “casa”.<BR/><BR/>Por fim, uma palavra para como a proximidade quase canónica, por estas alturas, da obra de Haynes a “Desperate Housewives” representa também o lado mais certinho de uma “neurose mainstream”. Por aqui passam, muito mais claramente os dilemas lacrimosos de Douglas Sirk, mas naquilo que Fassbinder destorceu (ou será naquilo que assentou raízes?). Seja como for, com óscares a mais ou a menos, o drama de Haynes, surge aqui claramente como um dos fortes candidatos a filme do ano. Absoluta obra-prima, a não perder. E para que se dissipem dúvidas, na mente dos mais cépticos, Haynes já é há muito um autor. 10/10
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