Passageiros ou capitães? (spoil)
Pedro Brás Marques
A ficção científica e a sua inerente liberdade criativa continuam a ser terreno fértil para histórias que nos fazem reflectir sobre a condição humana, sobre a passagem do tempo e o que com ele fazemos. <br />O argumento de «Passageiros» convida o espectador a entrar na nave Avalon, que transporta cinco mil almas a caminho dum novo planeta, Homestead. A viagem dura cento e trinta anos terrestres, a nave segue em piloto automático, pelo que todos estão em estado de hibernação. Mas trinta anos após a partida, algo de estranho acontece e Jim, um dos passageiros, acorda e depara-se com a solidão da vasta nave. Só tem um robot, no bar, para conversar. Passa um ano e Jim toma a mais do que discutível decisão de acordar outro passageiro, uma mulher, para lhe fazer companhia. Escolhe-a pelos critérios que entende serem os que mais se ajustam a si. Aurora acorda, eles apaixonam-se e vivem felizes até ao momento que ela descobre que o seu despertar não foi um mero acaso, mas sim propositado. E nasce a questão central: o que é estar vivo? É o período de tempo que se tem consciência ou é a duração física do corpo humano? <br />“Passageiros” está pejado de referências, umas mais subtis que outras. Começa logo pelo “momento Wall-E” em que acompanhámos a solitária personagem durante o seu dia-a-dia, o que acontece durante uma boa parte do filme. Depois, o “momento Bela Adormecida” em que esta “princesa” igualmente chamada Aurora, é acordada do seu sono profundo por uma versão adequadamente plebeia do Príncipe Encantado. E há, claro, o piscar de olhos a Tarkowski, a Kubrick e de até ao injustamente esquecido Douglas Trumbull e o seu conto ecológico, “O Cosmonauta Perdido”. Temos, ainda, as ligações à mitologia, como a da nave chamar-se Avalon e a única entidade acordada ser o bartender…Arthur. Ou seja, uma conjugação de citações que permitem à história ser ainda mais universal na sua proposta de questionar se, realmente, era preferível o “homem” e a “mulher” continuarem mais um século adormecidos com toda a imprevisibilidade do futuro ou se mesmo tendo encontrado a felicidade de forma pouco ortodoxa, se devem agarrar a ela porque esse é o desígnio da existência. <br />Se Jenniffer Lawrence, enquanto actriz, já não precisa de mais aplausos, a verdade é que Chris Pratt é uma surpresa. Entretido que anda em westerns terrestres e espaciais ou a lutar contra dinossauros jurássicos, o actor teve aqui um desafio: o de interpretar uma personagem que não precisa dos músculos para nada e cujo humor vai desde o desespero existencial até momentos de humor, no balcão do bar ou nas irritações com as teimosias tecnologias ao seu dispor… E ele aguenta-se muito bem. Já a realização, não passa da mediania. Talvez a herança artística fosse pesada ou talvez o norueguês Morten Tyldum não quisesse arriscar depois de ter sido nomeado para o Óscar de Melhor Realizador pelo trabalho no seu filme anterior, “O Jogo da Imitação”. Até à “revelação” sobre o despertar de Aurora, o filme corre muito bem mas, depois, Tyldum pede claramente a mão, perdido entre continuar uma história de contornos existenciais ou avançar para o thriller clássico da nave em perigo e de se ter de realizar incríveis proezas acrobáticas para que não se desfaça… <br />Depois do recente “A Chegada”, este “Passageiros” continua a oferta de cinema de ficção científica que vai para lá da habitual luta entre as forças opostas do universo ou de sonoros combates intergalácticos. São filmes que usam a imensidão do espaço exterior para nos questionarem sobre o nosso infinito interior e o que dele fazemos. Somos meros passageiros ou os capitães das nossas almas?
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