A volatilidade da memória
Pedro Brás Marques
“A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como recorda para contá-la”, escreveu Gabriel Garcia Marques no início da sua biografia, “Viver para contá-la”. É com esta realidade que se depara Tony Webster, um sexagenário divorciado que em "O Sentido do Fim" ocupa os seus tempos numa loja de artigos de fotografia em segunda mão. <br />Um dia é surpreendido por uma carta e um diário que lhe haviam sido deixadas em testamento pela mãe duma antiga namorada, com quem estivera apenas uma vez, o que lhe faz despertar uma série de memórias desse tempo, em que estava a terminar a adolescência. Como é normal, nem tudo o que Tony recorda foi o que aconteceu nem como aconteceu. E isso faz toda a diferença. Até porque essa percepção leva-o à procura, hoje, dos protagonistas de então, para confirmar as suas memórias e as consequências do que então ocorreu… <br />O filme é representativo dum certo “cinema inglês”: reconstituição sóbria e imaculada, actores irrepreensíveis e uma sensação de homogeneidade narrativa única. Isto apesar de se ter preferido uma solução diferente da do belíssimo livro onde se baseia. Com efeito, Julian Barnes dividira salomonicamente a acção em dois capítulos: antes e agora. Já o indiano Ritesh Batra optou por uma montagem paralela, oscilando-se entre o tempo actual e o passado. Não sei se a fórmula melhora o desenrolar da história e a explicação sobre as “traições” da memória, até porque o livro oferece mais hipóteses entre o que realmente poderá ter acontecido e a memória e o comportamento, então, de Tony. Terá sido ele o actor principal que desencadeou a tragédia ou foi efectivamente um espectador semi-passivo? <br />Ao contrário de muitas migrações de livros para o grande ecrã, esta funciona bem, porque apanhou perfeitamente o sentido do argumento: a memória e como ela nos comanda o sentido da vida, principalmente quando já pouco resta e se olha para trás em busca de preenchimento interior. A personagem principal, confrontada com o passado, sente necessidade de confirmar o que acontecera na juventude como forma de “fechar” o seu próprio ciclo de vida, para acreditar que aquilo que viveu não foi uma ilusão que o acompanhou para fazer aquilo que os anglo-saxónicos chama de “closure”, algo como “encerramento” mas no sentido de um círculo que se fecha e não algo que termina abruptamente, com um corte. E claro, o filme fica muito a dever ao desemprenho brilhante da sempre elegante e serena Charlotte Rampling e, especialmente, de Jim Broadbent no papel do algo atarantado Tony Webster, um apelido a que curiosamente se associa imediatamente ao dum guardião da memória, o dicionário Webster…
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