Um filme não se esgota nas críticas
Pedro Maia
Sendo crítico de cinema no site Boxofficemojo, muitas vezes me perguntam os meus colegas (todos americanos) qual a principal diferença entre o "gosto europeu" e o "gosto americano". A minha resposta anda sempre à volta de duas questões: o trabalho de direcção de actores e a montagem. Quanto ao primeiro tema, penso que a direcção de actores é muito mais escrutinada na América. Basta para isso ter visto recentemente "The Aviator", louvada segunda colaboração entre DiCaprio e Scorsese (aliás, basta ver a forma como a direcção de Scorsese dos seus actores sempre foi louvada, mesmo que o "box office" não confirmasse depois essa mestria); basta falar de "The Passion", objecto obsessivo de Mel Gibson; basta entrar no mundo de M. Night Shyamalam, em que existe sempre uma colaboração fetichista com um actor principal (e essa foi precisamente a maior crítica a "The Village": a inexistência de um actor focal na história) para perceber que na América dá-se uma extrema importância ao conceito do realizador e à integração de um actor nesse conceito (nem vamos falar de Spielberg e Hanks).<BR/><BR/>Na Europa, pela fragmentação da indústria e pela compartimentalização do "gosto" europeu, acaba por ser muito mais apreciado o trabalho do realizador na montagem, na forma como faz as situações sucederem-se, do que a construção de personagens a partir de uma visão peculiar de um realizador. E nisso, Woody Allen é regularmente chamado o "mais europeu" dos realizadores americanos. Havia ainda muito para dizer mas o tempo é pouco, portanto vamos passar a este filme. Afinal a minha ideia, como sempre, é levar a que mais pessoas do que aquelas que leram as críticas do filme no "Público" o vão efectivamente ver, portanto as minhas deambulações podem-se ficar por aqui.<BR/><BR/>"The Machinist" é tanto um gigantesco trabalho de direcção de actor como um filme onde a montagem é essencial para toda a atmosfera criada em torno do nosso vazio afectivo em relação à personagem principal. Mas vamos à nossa habitual nota humorística sobre a tradução do filme para português. Diz o dicionário da língua portuguesa: "Maquinista: pessoa que inventa, constrói ou dirige máquinas; aquele que, no teatro, está encarregado dos cenários e decorações." E ainda consegui encontrar um dicionário de sinónimos que inclui nesta palavra as pessoas que operam "as locomotivas ou similares". Ora, as pessoas analfabetas que em Portugal são responsáveis (?) por dar nomes aos filmes acharam, depois de ver(?) o filme que Machinist e Maquinista eram palavras sinónimas... Até tinham uma certa parecença em termos fonéticos e portanto deixaram estar. Claro que o filme não tem nada a ver com comboios, muito menos com teatro.<BR/><BR/>Machinist, na América, é qualquer empregado de uma fábrica que opera uma máquina, é uma palavra que faz parte da tradição "white trash" tão notavelmente protagonizada pelo rapper Eminem no filme "8 Mile". Ou seja... "O operário" (apenas como exemplo) estaria 15.000 vezes mais próximo do significado do filme (a vulgarização, o desaparecimento na rotina, etc.) do que este título ridículo e absurdo (mas ainda sem chegar aos pés do famoso "A Minha Namorada tem Amnésia") que só pode prejudicar o filme nas bilheteiras.<BR/><BR/>Mary Hobbes era a personagem central do primeiro filme de culto de Brad Anderson e o fio condutor entre os dois filmes é precisamente a existência de múltiplas personalidades. Mas em "The Machinist" estas personagens não precisam de ficar a assombrar um determinado espaço, pois elas coexistem num mesmo personagem e esse personagem deambula entre elas e entre um estado de falsa constante vigilância, inconsciente da sua fragmentação. Ou seja, "The Machinist" é um esforço gigantesco de um homem, Trevor Reznik, para desaparecer.<BR/><BR/>O próprio nome indica o personagem de "Mauss II", em que ratos representam judeus e gatos representam nazis. Reznik está prisioneiro, e o seu estado de saúde degrada-se. Não se consegue impedir a si próprio de emagrecer dia após dia (e aqui o trabalho físico de Bale ultrapassa mesmo o paradigma de Ben Kingsley para "Gandhi"), fazendo com que o seu corpo se torne cada vez mais deformado. É completamente incapaz de acreditar que alguém possa sentir qualquer tipo de emoção por si e portanto a sua vida é levada a cabo com a monotonia de pequenas compras.<BR/><BR/>Lentamente, o filme começa a derivar para "Memento", em que o personagem também sofre de amnésia, mas amnésia sobre tudo o que aconteceu no dia anterior. Também Reznik se esquece, apesar dos papéis que vai colocando pela casa com avisos para pagar contas e falar com pessoas. E é o reviver diário de pequenos fragmentos do acontecimento que estilhaçou a sua vida que lhe vão devolver a sanidade, destruindo-lhe completamente o coração. A impossibilidade de Reznik em desaparecer acaba por acentuar a clivagem com os seus fantasmas, que o fazem distrair com consequências terríveis para o seu mundo.<BR/><BR/>Mas à medida que ele procura enfrentar esses fantasmas também emerge a culpa, e com a culpa vem a consciência de que aceitando tudo o que é, terá de aceitar perder muito do que conservou no seu eu estrutural.<BR/><BR/>E pronto, afinal o filme tinha mais coisas para dizer que aquela crítica de sexta-feira, não tinha? Pois... só faltava terem comparado o filme com Hitchcock... Mas pronto, vão ver o filme e depois no Verão vão ver "Batman Begins". Eu sou fã de Bale, admito, mas ele é mesmo o camaleão dos camaleões e não precisa de receber 30 milhóes por filme para o ser ; )))
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