Tragédia nos tempos modernos
Nazaré
É preciso muita coragem para fazer um filme destes. Mistura vários temas malditos — a iniciação sexual "pecaminosa", as memórias do pesadelo da Alemanha nazi, a manipulação da Justiça, o analfabetismo — para desembocar em personagens que não se conseguem exprimir nos momentos cruciais, de tão profundamente amachucadas que a Vida as deixou. Ralph Fiennes é exemplar, neste exercício de neurose. Tanto o vemos em horas intermináveis de leitura das palavras de outros em voz alta, com a sua voz elegante, como em infindáveis segundos de bloqueio, o das suas próprias palavras. O protagonista (que também é, numa fase mais jovem, soberbamente interpretado por David Kross) vive no fundo dum poço onde os seus dilemas emocionais o mantêm prisioneiro, incapaz de revelar-se a si e aos outros; só com a filha, quando finalmente consegue emergir e ser ele próprio, vem acima. Mas porquê naquele local, para quê a morte, a vingança? Podiam ser outro lugar, outro tempo, outros encontros. Mas a escolha da Alemanha, na época em que o nazismo era absoluto tabu, dá-lhe uma intensidade impressionante, com a carga de culpas e remorsos que arrastam os destinos das personagens. Kate Winslet dá-nos a personagem mais ambivalente que se possa imaginar, entre anjo e demónio, verdugo e vítima, resignada ou lutadora. A esperança há-de ser o seu fim. E enquanto existe, ela é a ponte, secretamente resguardada, entre o protagonista adolescente e o adulto, ela é a personagem em que se consuma a tragédia que se conta neste filme. E a pergunta, implícita mas atrevida, é se nela isso seria injusto. Como os grandes exemplos clássicos e neoclássicos, a tragédia deste filme é do tamanho do mundo. Os produtores Minghella e Pollack fecharam com chave de ouro as suas carreiras no cinema.
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