Uma Boa Leitura
Ricardo Pereira
Reza a tradição que adaptações literárias para o cinema tendem a ser, como o conceito aponta, mais literárias do que visuais. Nesse sentido, deve-se reconhecer que transpor “As Horas” para o cinema representou um risco dobrado. Explique-se: o filme baseia-se em “As Horas”, de Michael Cunningham, prémio Pullitzer de 1998, que por sua vez tem como inspiração um dos romances mais célebres da língua inglesa, “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf, uma das criadoras da literatura moderna através de "fluxos de consciência” – textos introspectivos, subjectivos e, no caso, reveladores da sensibilidade feminina. No filme, a escritora, numa de suas últimas falas diz que "se deve encarar a vida de frente". Se mudarmos a palavra vida por desafio, obteremos a postura adoptada pelo realizador Stephen Daldry (de “Billy Elliott”) e pelo argumentista David Hare: encararam de frente a génese literária do projecto e transformaram-na na própria essência do filme em que livros são escritos, lidos, comentados, referenciados e, sobretudo, "vividos”. “As Horas” segue três mulheres em épocas e contextos bem diferentes ao longo de 24 horas. Virginia Woolf (Nicole Kidman) escreve “Mrs. Dalloway” no ano de 1923 nos arredores de Londres e revela-se incapaz de conciliar o mundo das ideias com as exigências do quotidiano. Laura Brown (Julianne Moore), casada, com um filho pequeno e grávida, vive na Los Angeles de 1951 e através da leitura de “Mrs. Dalloway” consegue evadir-se da sufocante vida doméstica. Já na Nova Iorque de hoje, Clarissa Vaughan (Meryl Streep), editora bem-sucedida, começa o dia comprando flores para uma festa em homenagem ao ex-namorado Richard (Ed Harris), um escritor em estado terminal de sida, e que a chama de “Mrs. Dalloway”. Afinal, Clarissa Dalloway é o nome da protagonista do livro de Virginia Woolf, que inicia sua jornada de 24 horas, prosaicamente, com a frase: "Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores". Virginia, como define sua irmã Vanessa (Miranda Richardson) vive duas vidas – a própria e a de seus personagens. Apesar de mostras de desequilíbrio, Virginia conta com o apoio do esposo Leonard (Stephen Dillane) e de médicos – e recusa ambos. Ela deixa a sua posição bem clara num doloroso embate conjugal numa estação de comboio. Virginia quer conduzir sua vida como bem entende – e decide por terminá-la em 1941 enchendo o bolso de pedras e afogando-se num rio com a mesma elegância e dignidade de seus textos, como mostra o prólogo do filme. Na ensolarada Califórnia, Laura Brown recusa a vida de dona de casa, esposa e mãe ao lado de um veterano da II Guerra Mundial (John C. Reilly, óptimo). Em seu lar, respira-se uma sufocante sensação de estranheza. Para ela, fazer um bolo é um desafio hercúleo. Uma vizinha sorridente Kitty (Toni Collette) logo deixa cair a máscara, provocando um gesto de genuína ternura de Laura. Apesar do carinho mecânico que devota ao filho pequeno, momentos de reconforto parecem vir somente da leitura de “Mrs. Dalloway”. A farsa do quotidiano feliz desmorona-se no fim da noite em diálogo de lancinante banalidade, enquanto o marido a espere deitado na cama e Laura chora copiosamente no banheiro. Das três mulheres, Clarissa aparenta ser a mais resolvida. Na América do século XXI, tabus sentidos por Virginia e Laura – sobretudo os ligados à sexualidade – são coisa do passado. Editora bem-sucedida, homossexual assumida e mãe solteira, Clarissa assume uma vida paralela ao cuidar, diariamente, do seu ex-namorado, também homossexual, Richard (Ed Erris). Clarissa, de forma vaga, sofre por um sentimento de nostalgia de um momento perfeito de felicidade vivido na juventude. Stephen Daldry, mais maduro neste sua segunda longa, envolve com delicadeza e elegância suas personagens numa mesma teia de vulnerabilidade diante do quotidiano, no qual emoções fogem ao controle e questionamentos geram mais angústias do que respostas. A bela música de Phillip Glass ocupa um lugar de honra na trama narrativa do filme – seja no início, quando tece uma rede sonora entre muitas cenas sem palavras, seja no desenvolvimento, quando se torna a voz das emoções de Virginia, Laura e Clarissa. Apesar de uma actuação realmente diferenciada, Nicole Kidman não faz nada a mais do que as outras protagonistas. Sua indicação – assim como sua premiação – ao Óscar de Melhor Actriz é apenas mais uma prova de que Hollywood funciona como um mercado financeiro e que quem está em alta hoje é Nicole Kidman.
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