«O Cavalheiro com Alma»
Pedro Brás Marques
<p>“Time’s what you make of it” proclamava, há uns anos, a mais popular marca de relógios do planeta. E, na verdade, o que releva não é a fria contabilidade dos dias, meses e anos de um ser humano, mas o que efectivamente experienciou. E sendo cada ser humano um universo único e incomparável, certamente que a busca dessa adrenalina existencial pode enveredar por caminhos que a maior parte dos cidadãos reprovará. <br />É precisamente esse o caso de Forrest Tucker, a personagem central de “O Cavalheiro com Arma”. Após uma vida inteira a roubar e a evadir-se de estabelecimentos prisionais, encontrámo-lo já idoso, mas ainda com o brilho nos olhos de quem se deslumbra a cada assalto que concretiza. Não é o dinheiro que o move, antes a necessidade de se sentir vivo, de vencer desafios que lhe façam ferver o sangue e a emoção de conseguir enganar terceiros e fazê-lo, há que admitir, sempre com muita classe. Nem todos temos a sorte de poder fazer o que realmente nos apetece, por condicionalismos pessoais, familiares e até morais, mas isso não é impedimento para Tucker. Mesmo quando sabe que vai ser apanhado, foge para sentir uma derradeira emoção. Quando vê o polícia que o investiga, em vez de fugir, vai ter com ele para conversar. De fato e gravata, um verdadeiro “gentleman”, dirige-se a um qualquer balcão duma instituição bancária e explica ao caixa, ou ao director, que está ali para fazer um assalto, solicitando que lhe entreguem o dinheiro. Sem tiros, sem violência, sem ruído, para logo sair com a mesma calma com que havia entrado. É claro que a polícia não anda a dormir e apesar de não estar perante o habitual “modus operandi” deste tipo de crime naturalmente que vai no seu encalço, especialmente o detective John Hunt que pessoaliza a questão. Mas Tucker e os seus dois colegas de profissão continuam a sua digressão pelo sistema bancário norte-americano como se nada fosse e o “gentleman-outlaw” acaba, claro está, por encontrar uma miúda por quem nutre verdadeira afeição, com quem poderá mudar de vida agora que o ocaso se aproxima, mas que se revela insuficiente para conseguir afastá-lo do vício. </p><p>Robert Redford dá corpo e alma a Tucker, auxiliado pelo par de colegas interpretados por Tom Waits e Donald Glover, enquanto a sua apaixonada Jewel é interpretada por Sissy Spacek. Casey Affleck é o principal perseguidor, algo perdido entre a admiração e a vontade de apanhar o elegante criminoso. Todos eles oferecem interpretações sólidas e serenas, acabando por formar uma verdadeira guarda de honra nesta anunciada despedida das telas de Robert Redford. É claro que a apurada e escorreita realização contribui, e muito, para a homogeneidade que se sente ao visualizar “O Cavalheiro com Arma”. David Lowrey sabe contar uma história como poucos e é mestre na economia narrativa. Os seus filmes duram cerca de hora e meia como em “Amor Fora da Lei” (2013) e no surpreendente “História de um Fantasma” (2017). E o mesmo se passa com os meios empregues, sem recurso a grandes efeitos para lá da reconstituição histórica, como acontece primorosamente aqui, desde o guarda-roupa aos automóveis, incluindo a própria paleta de cores, a evocar as imagens e os tons dos anos 80 do século passado. </p><p>Se Robert Redford realmente se despede do cinema, fá-lo em grande, tendo encontrado em Lowrey o escultor perfeito para a homenagem. O realizador não esconde a idade do actor, antes a recorda constantemente nos omnipresentes grandes planos da sua face, bem como brinca com o passado, quando o da personagem e do actor se (com)fundem no momento em que a polícia está a ver o longo cadastro do primeiro e folheia as sucessivas fotografias. Até porque Redford interpretou vários “bons bandidos” ao longo da sua carreira, como nos clássicos “A Golpada” e “Dois Homens e um Destino”. “O Cavalheiro com Arma” é isso, assim, a serena despedida dum verdadeiro “Cavalheiro com Alma”.</p>
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